(Para Waldemira Fernandes Reis, in memoriam)

Vou mostrando como sou

E vou sendo como posso

Chego a não acreditar que hoje completo 70 anos. Pergunto-me, como foi possível passar todos esses anos sem nem sequer mesmo perceber o passado mais distante, a infância em Pesqueira, por exemplo, como uma ação expressa no pretérito perfeito.

Todos os eventos da minha vida parecem estar, neste momento, inacreditavelmente próximos uns dos outros, numa espécie de compressão tempo-espaço, como se refere David Harvey, em Condição Pós-Moderna.

Um presenteísmo de certo modo assustador, pois sou capaz de descrever, em detalhes, acontecimentos passados como havidos aqui e agora. Salvo aqueles que só a psicanálise é capaz de abrir à visitação. Por isso, talvez, reproduzo como um mantra a frase emblemática do poeta Mario Quintana: o passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente.

Casa onde nasci em Pesqueira, à direita, em estilo art déco, hoje demolida. A descaracterização-demolição do casario tem sido uma constante no município. A casa à esquerda mantém as características originais, pela proprietária e amiga de infância, Lourdes Alves de Freitas. Foto: tela do artista plástico pesqueirense Sivanildo.
Acervo pessoal.

Carlos Drummond de Andrade também sofria do mesmo presenteísmo. Quando tinha 77 anos, lhe foi perguntado sobre a velhice. Revelou que não sentiu o tempo passar, devido à sensação de que tudo ocorreu como numa viagem em velocidade supersônica. Para ele, a infância tinha ocorrido no dia anterior. De alguma forma, acho que nós todos temos a mesma sensação de achatamento temporal, à medida que a idade avança.

Escola Estadual Cacilda Almeida (lado direito, abaixo), onde estudei do Jardim da Infância ao Exame de Admissão. O edifico mantém todas as características originais, inclusive internas. Parabéns aos gestores que compreendem a importância do patrimônio arquitetônico e paisagístico do município. Do lado direito, primeira sala de aula que entrei na vida. Fotografias realizadas e presenteadas pelas amigas Lourdes Alves de Freitas e Marta Souza (janeiro, 2024).

Certa vez, perguntei a uma tia de 97 anos, lúcida e bem-humorada, do que mais tinha saudade na vida. Respondeu-me, sem pestanejar: dos meus 60 anos. A lição estava tomada: a juventude não é necessariamente a boa lembrança do tempo vivido.

Ouso dizer que nos percebemos velhos, muito mais a partir do outro do que de nós mesmos. É o olhar alheio que determina e emoldura nosso devir, na maioria das vezes sem critério ou modulações.

Essa presença inevitável do outro em nós tem levado homens de minha geração, ou no entorno dela, e até mais jovens, a se transformarem nos clones humanos de Jean Baudrillard: corpos tatuados (muitas vezes sobre músculos já sem tônus), calvícies preenchidas, lentes de contato para clarear olhos e dentes, harmonização facial, depilação corporal, tingimento de sobrancelhas, barbas e cabelos, produtos de maquiagem – para os mais audaciosos –, consumo de anabolizantes, lipoaspiração, implante de fios de sustentação das camadas da pele do rosto e toda sorte de marketing “rejuvenescedor”, para que, sorrateiramente, o capitalismo se reproduza nos corpos adulterados.

São esses mesmos clones, cujo rejuvenescimento só tem alcançado a espessura de uma derme, que resistem às vacinas contra a Covid-19 e ao exame de toque retal da próstata, como se os urologistas quisessem fazer sexo com os dedos em ânus alheios.

Quando percebo esses replicantes nas ruas, relembro involuntariamente a cena final do filme Morte em Veneza, do extraordinário Luchino Visconti, perpassada pelo Adagietto da Sinfonia nº 5 de Gustav Mahler.  No desfalecimento do humano, assistimos em close-up ao derretimento da maquiagem no rosto envelhecido e melancólico de Aschenbach (Dirk Bogarde), pela ação implacável do tempo. Ou será pelo excesso do outro em nós? 

Jean-Paul Sartre nos interpela para irmos além das pequenas espessuras humanas, ao dizer: Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você.

Abro um vinho, me olho no espelho do tempo, me reconheço nas minhas rugas, calvície e barbas brancas, tal como me reconheço no Mistério do Planeta, essa bela canção-poesia de Luiz Galvão e Moraes Moreira, que escuto neste dia de São Brás:

Vou mostrando como sou

E vou sendo como posso

Jogando meu corpo no mundo

Andando por todos os cantos

E pela lei natural dos encontros

Eu deixo e recebo um tanto

E passo aos olhos nus

Ou vestidos de lunetas

Passado, presente

Participo sendo o mistério do planeta.

Pesqueira, 3 de fevereiro de 2024.

Música Mistério do Planeta: https://youtu.be/Eb5E3TzO0bw?feature=shared

Filme Morte em Veneza, cena final: https://youtu.be/36QBU474nqM?feature=shared

Cantor pesqueirense, Paulo Diniz, Coco de Pesqueira: https://youtu.be/yQzrZF9u0wU

PS: Angelo Brás Fernandes Callou é Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova de Lisboa.

Foto em destaque, Angelo Brás Fernandes Callou: divulgação.

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Angelo Brás

Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova Lisboa.

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