O leitor de As pequenas chances, romance lançado pela Todavia Editora da escritora e médica psiquiatra Natalia Timerman, desde as primeiras linhas já é introduzido ao mote central da obra, ou seja, uma filha que, abalada pela perda do pai — o infectologista Artur Timerman, que morreu de câncer em março de 2019, discorre sobre a evolução da doença do pai e assim reflete sobre vida e o que a finitude provoca nas relações humanas.

A autora, mesmo sendo judia, nunca havia se interessado pelas tradições judaicas e, após a morte de Artur, viaja com a família para tentar descobrir as origens de seus antepassados, que migraram para o Brasil em 1926 da região em que hoje é a Ucrânia.

O livro composto de 204 páginas é dividido em três partes e o epílogo. Na primeira parte, a autora, que já lançou dois romances e uma coletânea de contos, faz o relato, sempre em primeira pessoa, sobre o encontro inusitado que teve no aeroporto com o médico de cuidados paliativos que tratou de seu pai nos últimos meses, antes da morte dele. Intercalando o momento presente com o médico e o embarque para a sua viagem em que iria se encontrar com o marido e os filhos, Natalia relembra o processo em que toda a família esteve envolvida com a doença de Artur, desde o início do tratamento, a melhora dele, a recaída e os momentos que antecederam a despedida.

Na segunda parte o relato é mais comovente. A autora continua montando o mosaico sobre a história de seu pai, com dados de sua viagem no presente intercalando com as lembranças que remetem ao cotidiano de Artur e seu convívio familiar. Um recurso criativo utilizado é a forma como Natalia conta a saga de sua irmã Gabriela, engenheira naval que estava a trabalho nos mares da África, para voltar a tempo de encontrar o pai ainda vivo. Usando a terceira pessoa e o texto grafado em italic, a autora introduz o cotidiano da irmã no navio e a decisão de voltar. O relato é repleto de emoção e suspense:

“Ela precisava ir, e a esperança na melhora do pai fez com que mantivesse os planos.”

“Por volta de quatro da tarde, ela volta à sua cabine para descansar um pouco. Pegou na mão o celular, mensagens, ligações, a irmã tentando falar, e então só depois veio tudo de uma vez. Volta, Ga.”

A terceira parte do livro é dedicada à viagem de Natalia, primeiramente para encontrar o filho que havia participado de um teste escolar envolvendo crianças de várias partes do mundo. Ao lado do marido e dos dois filhos, eles partem para a Ucrânia para tentar resgatar histórias de seus antecedentes e o fio condutor que liga os antepassados a Artur. A autora conta em detalhes como foram os dias da viagem e o que sentiu ao visitar o vilarejo de Shargorod:

“Algo no meu peito aperta quando avistamos o portal da cidade, o ar parece não conseguir encher completamente minha caixa torácica. A sensação não é prazerosa em si, mas me causa prazer o fato de senti-la. O arrebatamento. É isso, então. É assim.”

Ao final da viagem, a autora ainda no hotel, com a ajuda de uma tia que lhe enviou mensagem de São Paulo, vai ligando as informações familiares com as descobertas que obteve. Assim ela se lembra de momentos importantes de sua existência, o nascimento de seus filhos, a ligação do pai com os netos e reflete sobre vida e morte. Ou o que a morte do pai provocou, a sua busca pelas origens familiares, o entendimento da vida.

No epílogo, a autora envia uma carta a uma amiga e o leitor, que fora arrebatado para a história de Artur logo nas primeiras linhas, tem consciência de como Natalia criou o romance, como os fatos reais se mesclam com a ficção. A autora conclui ao comparar a fuga dos judeus da Europa no início do século XX (inclusive seus bisavós) com o destino dos ucranianos hoje, que viram a Rússia invadir sua pátria:

“Logo nas primeiras notícias de guerra entendi que o movimento de imigração dos nossos bisavós continua fazendo sentido até hoje, quando uma força que, numa compreensão provavelmente redutora dos fatos, me parece semelhante à que os fez migrar, e que continua me impedindo o caminho de volta, como um eco, os estrondos da violência de antes se fazendo ouvir ainda.”

Ficha técnica:

Título: As pequenas chances

Autor: Natalia Timerman

Editora: Todavia, 204 pgs

Preço: R$74,90

O autor da resenha.

Maurício Mellone é jornalista com mais de 40 anos de estrada, fez carreira na imprensa de São Paulo – rádio, TV, impresso e assessoria de imprensa.

Fotos de Natalia Timerman em destaque: divulgação.

Demais imagens: divulgação.

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Edgard Homem

Por aqui transitam a arte e a cultura, o social – porque é imprescindível dar uma pinta de vez em quando, as viagens, a gastronomia e etc. e tal.

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