Geralmente minhas resenhas literárias são de lançamentos ou de obras recentes, sempre de autores brasileiros contemporâneos. No entanto, no último mês, me deparei com a obra de Conceição Evaristo, Ponciá Vicêncio, terceira edição lançada em 2017 pela Pallas Editora, e não consegui parar de ler um só minuto até chegar ao final!
Com uma linguagem encantadora e envolvente, a autora — imortal da Academia Mineira de Letras — relata a história sensível de Ponciá Vicêncio, uma garota que vive na roça com seus pais e o irmão e sonha em mudar de vida. Ponciá adolescente resolve enfrentar os desafios da cidade, pega o trem e deixa tudo para trás. Seus caminhos, andanças, sonhos e ilusões convivem com os desencantos, desilusões e descaminhos; tudo relatado com poesia, graça e profundidade, numa mescla de presente, passado, lembranças e vivências.
Conceição Ponciá Evaristo Vicêncio. Uma brincadeira misturando o nome da escritora mineira com o da personagem que ela criou; mas a própria Conceição, no prefácio do livro, admite sua admiração e identidade com sua cria, dizendo que suas personagens são suas parentes:
“Há uma parenta da qual eu gosto particularmente. Essa é Ponciá Vicêncio. Nossa afinidade (Ponciá e eu) é tão grande, que, apesar de nossas histórias diferenciadas, muitas vezes meu nome é trocado pelo dela. Recebo o nome da personagem, de bom grado. A história que ofereço a vocês não é a minha história e sim a de Ponciá, mas, quando me chamam por ela, quando trocam o meu nome pelo dela, orgulhosamente respondo: presente!”, confessa Conceição Evaristo.
A história de Ponciá, narrada na terceira pessoa, não é contada seguindo a linha do tempo. Há idas e vindas e autora foca sempre no mundo interior da personagem: Ponciá lembra-se da infância na roça, de seu medo de passar pelo arco-íris (diziam que menina que passasse por debaixo do arco-íris virava menino), de sua decisão de pegar o trem para a cidade. No instante seguinte, a trama já está na cidade, Ponciá com seu homem. Lembranças de vários momentos da vida que se fundem com seu cotidiano:
“O grito do homem reclamando da lerdeza de Ponciá fez com que, mais uma vez, ela interrompesse as lembranças. Apesar da ida e vinda dela no tempo, em poucos instantes a janta ficou pronta.”
Das lembranças da infância, vem à tona o que a motivou vir para a cidade. “Cansada da luta insana, sem glória, a que todos se entregavam para amanhecer cada dia mais pobres, enquanto alguns conseguiam enriquecer a todos os dias.” A autora, pelas andanças de Ponciá, denuncia as péssimas condições de trabalho no campo e a exploração ainda presente na zona rural, numa espécie de semiescravidão, além de falar sobre a migração para a cidade e a continuidade da exploração, com trabalhos de pouca remuneração a essas pessoas e a falta de oportunidade.
Paralelamente à trajetória de Ponciá, a trama também relata a vida de seu irmão, Luandi José Vicêncio, que depois da morte do pai parte para a cidade, onde ele deseja se tornar um soldado. Diferente da irmã que aprendeu a ler, Luandi nunca foi apresentado às palavras. Consegue se empregar na delegacia, como faxineiro, e fica amigo do soldado Nestor.
“Soldado Nestor quando podia, quando o delegado e o soldado branco não estavam de plantão, sozinho, ensinava a Luandi assinar o nome. Fic umava preocupado com o moço, ele queria, porque queria ser soldado.”
O destino dos irmãos na cidade não os aproximou e ambos voltam ao povoado para ter notícias, cada um num momento. Um elo entre eles é a velha Nênga Kainda, que além de abençoá-los faz profecias sobre o futuro deles ao lado da mãe, Maria Vicêncio. De volta à cidade, eles tocam suas vidas e Luandi é convidado pelo soldado Nestor a visitar uma exposição de utensílios de barro e o rapaz se emociona ao encontrar peças criadas por Ponciá e a mãe.
No desfecho da obra, Conceição Evaristo lança mão da poesia e da filosofia: sua prosa/poética traz uma profundidade ímpar, com Ponciá e Luandi tendo revelações e entendimentos sobre a existência.
“A vida era um tempo misturado do antes-agora-depois-e-do-depois-ainda. A vida era a mistura de todos e de tudo.
No posfácio, a professora Maria José Somerlate Barbosa faz uma análise profunda da obra, ressaltando sua importância:
“Além de apresentar uma trama psicológica e emocional complexa, Ponciá Vicêncio retrata e analisa questões sociais e raciais. Escrito de dentro para fora, o romance apresenta muitas das mesmas qualidades da poesia lúcida e insone da autora. Há muito não lia um texto que captasse tão sinceramente os elos de ternura e afeição entre os personagens e que simultaneamente trabalhasse a linguagem de forma bastante poética, expressando tanto a ânsia de definir sua identidade num ambiente marcado pelas diferenças econômicas, sociais e raciais. Ave, palavra!”, conclui a professora.
Ficha técnica:
Título: Ponciá Vicêncio
Autora: Conceição Evaristo
Editora: Pallas, 120 pgs
Preço: R$40,00
Maurício Mellone é jornalista com mais de 40 anos de estrada, fez carreira na imprensa de São Paulo – rádio, TV, impresso e assessoria de imprensa.
Foto em destaque de Conceição Evaristo: Dani Dacorso.
Demais imagens: divulgação.
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