Sei bem agora as razões de gostar tanto da literatura de Chico Buarque de Holanda. Há poucos instantes, não saberia explicar exatamente o porquê de correr às livrarias feito um adolescente ao encontro dos amigos, a cada novo livro lançado pelo escritor. 

Ao ler a última página de sua mais recente obra – Bambino a Roma (Companhia das Letras, 2024, 158 p.) –, a palavra escavador surge em mim como uma espécie de ato falho ou signo indicial próprio que me engancha aos livros do escritor de avô pernambucano. Chico Buarque é um escavador de si mesmo, ficcional ou não, verossímil ou não, pouco importa. O Irmão Alemão (2014), Essa Gente (2019) e, sobretudo, Bambino a Roma, não me deixam mentir. 

Chico é um escavador da nossa brasilidade, e nos arrasta numa expedição arqueológica literária, para nos mostrar como de fato somos no “Brasil, um país do futuro”. Stefan Zweig, autor da emblemática frase, talvez redefinisse Uma Pequena Viagem ao Brasil (1936), se houvesse conhecido o vencedor do Prêmio Camões de Literatura, de 2019. 

Metaforicamente, ouso dizer, que a obra buarquiana, pelo menos desde Estorvo (1981), é uma espécie de texto literário da vida brasileira, tal como ela é. Mas ao revés de Nelson Rodrigues. Chico Buarque desnuda a crueza da vida social no país (talvez, carioca; talvez, paulistana; talvez, pernambucana; talvez da classe média, na sua relação autoritária com os excluídos e sua subserviência aos ricos), não pela palavra em linha reta da dramaturgia rodriguiana. Mas por curvas poéticas precisas, delicadas, como em Bambino a Roma, numa engenharia narrativa milimétrica à la João Cabral de Melo Neto e Osman Lins (aqui me refiro ao primeiro romance deste autor, O Visitante, de 1955), recheadas de chistes, sarcasmo e humor. 

Bambino a Roma pode ser lido como uma crônica da vida de Chico Buarque na infância romana, em que com a verossimilhança, o imaginário, a fantasia, a ficção, a realidade, tal como a vida dele, a minha, a sua, a brasileira é; o leitor poderá se enveredar também por uma síntese-percurso, digamos, psicanalítico do personagem, em processo de remembramento in loco do tempo de criança, na volta a Roma, na velhice.

Fio a fio, o protagonista vai tecendo seu próprio enredo (ou será de todos nós?): a casa onde viveu, que insiste em entrar, apesar dos empecilhos impostos; a família; os primeiros amigos; o primeiro filme assistido; os traumas; a descoberta do sexo, quem sabe do amor; a escola; a liberdade do imaginário bambino pelas ruas romanas coalhadas de pinheiros-mansos inesquecíveis. A Gestalt se fecha com o encontro inesperado do amigo de infância em estado moribundo: “Súbito, com seu vozeirão de barítono, me manda voltar para o meu país: – Torna al tuo paese, figlio di puttana.”

Não há como o leitor não se ver bambino em Roma, ou em qualquer lugar que queira. Logo de cara, os vômitos do personagem no navio que balança relembram os meus sobre minha irmã mais nova, sobre minha mãe e sobre os passageiros que teimavam em não fechar as janelas posteriores à minha; o perscrutar de ruas desconhecidas por onde morei, qual um Bambino a Roma, Pesqueira, Recife, Santa Maria, São Paulo, Lisboa. E o mais obsessivo, adentrar em ambientes vividos por pessoas conhecidas e, sobretudo, por mim mesmo no passado, como faz “Chico”, 70 anos depois, no apartamento alugado por Sérgio Buarque de Holanda à Via San Marino, 12, a Roma. 

Bambino a Roma talvez seja o livro mais adulto de Chico Buarque de Holanda, pois de bambino Chico não tem nada!

Bairro de Campos Elíseos, São Paulo, dezembro de 2024.

Angelo Brás Fernandes Callou

Ele é Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova Lisboa.

Imagem de abertura do texto, acrílica sobre papel de 2024, 27cm x 23cm, pintura assinada por Angelo Brás Fernandes Callou: divulgação.

Demais imagens: divulgação.

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Angelo Brás

Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova Lisboa.

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