A capa toda branca e o título – PURO – em relevo já produz o primeiro estranhamento ao leitor. E nas primeiras páginas o Prelúdio traz texto de 1452 autorizando o rei de Portugal e Espanha a “caçar, capturar e subjugar pagãos e inimigos de Cristo a fim de reduzi-los à servidão perpétua”. Há ainda artigo da constituição de 1934 estimulando a eugenia e limpeza étnica.
É desta forma direta que a escritora mineira Nara Vidal escancara em seu terceiro romance, lançado pela editora Todavia, o processo de limpeza e higiene social na cidadezinha mineira fictícia de Santa Graça, promovido pela elite e pelas autoridades políticas e médicas locais. Não há diálogos e a obra é constituída dos pensamentos e reflexões do padre, do médico, do prefeito e de seu irmão, das três velhas que criam um jovem de 15 anos num casarão sinistro, de uma enfermeira que surge na cidade, além de Íris, a empregada negra que trabalha no casarão e na casa de Ícaro, o garoto deficiente “que só sabe babar e cair”.
Natural da cidade mineira de Guarani, Nara Vidal, aos 50 anos, é formada em Letras pela UFRJ, com mestrado em artes e herança cultural pela London Met University. É autora de livros infanto-juvenis e dos romances Sorte/2018 e Eva/2022, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura. Lançado no ano passado, Puro venceu o Prêmio APCA/2024 (Associação Paulista de Críticos de Arte) na categoria romance.
A obra de 96 páginas apresenta quatro partes: Prelúdio, Ícaro atravessa o oceano, Delfina Bittencourt e por último Gregório sem pele. Sem usar diálogos, a autora introduz as falas e pensamentos dos personagens com indicações: Ícaro vê, Olavo pensa, Íris cospe, Helga explica. Assim o leitor vai compondo a narrativa e compreendendo o enredo assustador de tudo o que ocorre naquela cidadezinha.
“LÁZARO GRITA:
Lava a mão, Íris, esfrega. Lava direito pra ver se o preto sai.”
“OLAVO PENSA:
Voa, Ícaro, voa. Morre, Ícaro.”
Sem pudor ou qualquer tipo de censura, os personagens disparam seus preconceitos e ideais racistas:
“OLAVO DIZ:
Santa Graça ainda vai ser referência no mapa brasileiro. Nossa política eugenista é das mais audaciosas e avançadas. Vai chegar o dia do nosso reconhecimento. O mais importante é a semente que estamos plantando.”

Se por um lado os pensamentos dos personagens correm soltos, sem freios, por outro lado as ações destes mesmos personagens são camufladas e o leitor é obrigado a descobrir o que realmente acontece, por exemplo, no interior do casarão das três velhas, que estão sempre cozinhando. Qual o real destino dos “pretinhos, que viviam incomodando as casas das pessoas de bem, pedindo comida, atrapalhando o trabalho dos outros em vez de procurarem serviço. Ou ainda o que ocorre no interior da sacristia do padre Arcanjo, que recebe garotos no final do dia; o passado de Delfina/Helga também é obscuro. Outro enigma da cidade é a epidemia de apendicite, que acomete principalmente com mulheres negras do bairro pobre de Mata Cavalo.
“O Joaquim virou apendicite terrível. Quando procurei o dr Lírio e ele viu a gravidez, mandou me operar. Disse que parecia feto, mas era apêndice infectada”.
O que mais me chama a atenção no romance é a falta de contraponto aos preconceitos e às atitudes racistas e de limpeza étnica. A autora evidencia os absurdos, escancara práticas de eugenia cometidas em Santa Graça, talvez com a intenção de chocar realmente o leitor. Estamos diante de uma obra de ficção datada: década de 1930, período auge do nazifascismo no mundo que disseminava o preconceito étnico, religioso e cultural.
No entanto hoje o mundo vê o crescimento da extrema direita, com exemplos de limpeza étnica, como no Oriente Médio, na faixa de Gaza, ou as teorias de supremacia defendidas pelo atual presidente dos EUA. Puro pode contribuir para a discussão e reflexão sobre valores tão caros à humanidade, como direitos humanos, desigualdade social e a luta por inclusão social, em que todas as pessoas – independentemente de raça, gênero, deficiência ou condição econômica – tenham acesso às oportunidades na sociedade.

Ficha técnica:
Título: Puro
Autor: Nara Vidal
Editora: Todavia, 96 pgs
Preço: R$69,90

Maurício Mellone é jornalista com mais de 40 anos de estrada; fez e faz a carreira, majoritariamente, a partir da imprensa de São Paulo – rádio, TV, impresso e assessoria de comunicação.
Foto em destaque de Nara Vidal: Bruna Casotti.
Imagem da capa de Puro: divulgação.
Foto de Maurício Mellone: divulgação.
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