Dedico este texto à Sandra Helena Dias de Melo
‘Estou de férias. Obrigatórias. Democraticamente recomendadas pela instituição em que trabalho.
Para que férias, se não posso viajar? Para que férias, se nem mesmo posso sair de casa? E, se assim desejasse, para onde ir? Sou apenas um a mais no filme O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel. Os personagens estão reunidos numa casa, querem e podem sair dali, mas não conseguem.
Escancaro a janela da sala nesta manhã e agradeço aos deuses gregos e aos orixás, pelo que vejo do outro lado da rua: um pedacinho do mar do Pina, as copas de alguns coqueiros, o fim das ondas na praia e o que restou da restinga. Fragmentos banais que, pela sua grandeza invisível, aplacam meus dias e dias de perplexidades. Estou no alto do precipício, empurrado à força pelo próprio Presidente da República. E ele não está sozinho, até o fascismo dos bons homens faz a sua parte, diria o escritor português, Valter Hugo Mãe.
Deito-me no sofá, de costas à luz do sol. Continuo a leitura do dia anterior. Olho para as estantes ao lado, com quase dois mil livros? Talvez. Foi tudo o que acumulei na vida. Sinto-me rico e privilegiado. Mas desconfortável diante da dor do outro. As sirenes das ambulâncias não cessam de tocar lá fora. As pessoas se fotografam, sorrindo nas redes sociais; e as universidades retomam normalmente seus calendários de aulas obrigatórias para professores e alunos, remotas, mas com acenos presenciais do alto do precipício, sob os aplausos unânimes dos gestores.
Viro as últimas páginas de O Remorso de Baltazar Serapião (Biblioteca Azul, 2018), de Valter Hugo Mãe, Prêmio Literário José Saramago (2007). Se Hugo Mãe em A Máquina de Fazer Espanhóis (Biblioteca Azul, 2016), Grande Prêmio Portugal Telecom de Literatura (2012), se volta aos idosos do Lar da Feliz Idade, num Portugal livre do fascismo salazarista, em O Remorso de Baltazar Serapião, o tema central são as mulheres. A violência contra as mulheres. Mesclada pela subserviência humilhante de homens e de mulheres, diante da exploração da Casa Grande, numa aldeia perdida na Idade Média. A riqueza linguística desta obra nos remete a Saramago, em Memorial do Convento, e a Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas. Um tsunami linguístico, anuncia o próprio Saramago, no prefácio do livro.
Nunca ouvira falar desse autor, apesar de tantas vezes ter fuçado as estantes da Livraria Bertrand, no Chiado. As duas obras premiadas chegam às minhas mãos, por indicação de um amigo paulista. É uma bênção esse encontro com a literatura de Valter Hugo Mãe, pois ao colocar em carne viva as contradições humanas, somos tomados por uma reflexão profunda, diante das nossas perplexidades no momento atual.
As contradições humanas, tão difíceis de ser toleradas nos outros, embora sejamos complacentes com as nossas, se desnudam na pandemia, sem nenhum disfarce, mesmo entre aqueles que usam máscaras; e sem nenhum pudor, como a recente censura do reitor da UFPE, eleito pela universidade e empossado por Jair Bolsonaro, que solicita, do alto do precipício, a supressão do nome do Presidente da República em um vídeo produzido por um professor.
A leitura de A Máquina de Fazer Espanhóis e O Remorso de Baltazar Serapião nos sugere que as contradições cometidas trazem consigo penalidades, refletidas nas dores subjetivas, quando alcançam a consciência. E não há como fugir delas, pois humanas.
O leitor não consegue abandonar a leitura à medida que o autor constrói humanos ficcionais, imitados pela vida, em suas contradições, que se reconciliam ou se resignam pelo sofrimento, ora na velhice, ora no amor. É uma escritura sem letras maiúsculas, sem pontos de interrogação, com frases que parecem trocar as palavras do seu lugar original, dando nós de interpretação na nossa cabeça (ou está a desfazer?) e, sobretudo, provocam no leitor reações de ódio, compaixão, perguntas sem respostas, desencantamentos, com os quais o escritor não compactua. Ele nos deixa suspenso do texto, a pensar. Em outras ocasiões, oferece saídas imprevisíveis, com as quais, desta vez, não concordamos. Hugo Mãe desfaz as previsibilidades com que construímos a vida, nossas contradições e nossas dores.
Em A Máquina de Fazer Espanhóis, o personagem principal é o barbeiro aposentado Silva. Um homem bom. Quando sua mulher morre, é levado a contragosto para um abrigo, por sua própria filha. Traz em algum lugar escondido da mala a dor implacável do remorso. Foi em nome do grande amor dedicado à esposa, aos filhos e à família que comete uma covardia, em plena ditadura salazarista. O fascismo dos bons homens.
Pouco a pouco, em meio às vicissitudes do abrigo, Silva vai recompondo sua vida entre os homens e as mulheres idosas. Ali se encontra consigo mesmo e com os outros. Liberta-se, enfim, da dor silenciosa que o atormentara a vida inteira, num processo narrativo de confronto com os filhos, com a religião, com a doença, com a proximidade da morte, com o fascismo, com o mundo, ao tempo em que aquele lar vai se transformando, no apagar das luzes, no lugar mais verdadeiro e feliz, talvez, de toda a sua vida.
Em O Remorso de Baltazar Serapião, ao contrário do barbeiro Silva, a dor não é superada. Baltazar, em um processo de desumanização chocante das mulheres, na sua miséria humana, não tem outra alternativa senão a de conviver com o remorso, qual um Fausto, com sua alma vendida ao diabo. Apesar do amor que diz sentir por sua mulher, depois de tê-la desfigurado, torcendo-lhe um pé, um braço e lhe arrancado um dos olhos, é condenado por uma bruxa a conviver eternamente colado ao irmão e a um amigo. Ao mínimo afastamento de um deles, tudo ao redor se incendeia e se esmaece.
Se me fosse dado o privilégio de indicar alguma obra literária aos gestores públicos nesses dias sombrios de desumanização da vida, retiraria apenas dois livros das minhas estantes: A Máquina de Fazer Espanhóis e O Remorso de Baltazar Serapião. Dizem que a literatura salva’.
Praia do Pina, 26 de março de 2021
Referências
Diario de Pernambuco
PS: Além do texto, a aquarela que o ilustra, também, é de autoria de Ângelo Brás Callou. Luxo só.
Imagens: divulgação.
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