(Para Maria Luiza Lins e Silva Pires e Ronice Franco, que visitaram o Japão)

Foi numa entrevista de João Moreira Salles que ouvi falar pela primeira vez do cineasta japonês Yasujiro Ozu (1903-1963). Do Japão, conhecia apenas filmes de Akira Kurosawa (1910-1998) – em virtude de sua projeção internacional – e de Nagisa Oshima (1932-2013), leia-se O império dos sentidos (1976), no âmbito da nouvelle vague japonesa. Este filme, como sabemos, foi censurado no Brasil, e no país de origem, por apresentar cenas de sexo explícito.

Salles relata que ao filmar Santiago (2006), antigo mordomo da mansão de sua família, no bairro da Gávea, no Rio de Janeiro, hoje Instituto Moreira Salles, utilizou alguns enquadramentos à la Yasujiro Ozu. Vemos Santiago, em branco e preto, “encarcerado”, por planos médios e estáticos (às vezes em close up), a partir de uma câmera praticamente paralisada, à altura de um homem sentado no chão. Foi uma homenagem à genialidade do cineasta, afirma o diretor. Essa entrevista me levou a conhecer o essencial da filmografia de Yasujiro Ozu, publicada pela Versátil, num conjunto de 22 filmes, editados em quatro volumes. Era uma vez em Tóquio (1953) e Pai e filha (1949) são representativos da estética ozuniana no enquadramento das cenas.

Se Salles me levou a Yasujiro Ozu, agora é este cineasta quem me leva, por assim dizer, ao cinema de Kenji Mizoguchi (1898-1956). Ao ler o nome Ozu, na proposta do curso Cinema japonês, de Ozu, Mizoguchi e Kurosawa à nouvelle vague japonesa, realizada em São Paulo, pelo Sesc Paulista, não vacilei e me inscrevi imediatamente nas aulas de Fernando Oriente. Era uma oportunidade ímpar de conhecer, em plenas férias, “O maior cineasta japonês ou, simplesmente, um dos maiores cineastas”, como afirmou Jean-Luc Godard.

Fala-se em mais de 200 títulos a produção cinematográfica de Mizoguchi. Mas, na verdade, são 85 filmes. Destes, sobreviveram apenas 30 obras, segundo Audie Bock, na primorosa coletânea – Mestre Mizoguchi, uma lição de cinema –, organizada por Lúcia Nagib. Os mais representativos, para nossa sorte, estão disponíveis no YouTube (vide alguns links abaixo). A Versátil também publicou onze filmes do diretor, em dois volumes.

O cinema de Mizoguchi nos apresenta um Japão bem além do bairro da Liberdade, em São Paulo. Mesmo que na capital paulista nos apaixonemos pelos estereótipos da cultura nipônica, sua culinária, sua gente, sua louça, o minimalismo na decoração, as ikebanas (sempre tão arrebatadoras), o bambu, o tatame, a delicadeza, é no cinema mizoguchiano que o Japão se mostra por inteiro. Pelas entranhas. Pelas entranhas das mulheres, em certos momentos históricos da cultura japonesa.

A opressão e a humilhação das mulheres são temas recorrentes em Mizoguchi, um dos pioneiros a tratar a condição feminina no Japão. Ele não reduz a condição social da mulher à questão cultural japonesa, destituída da dimensão política. Diferentemente, portanto, de Oliveira Lima, ouso dizer, quando discute a condição da mulher, num dos capítulos do livro No Japão, impressões da terra e da gente, de 1903, primeira obra escrita por um brasileiro sobre o país do sol nascente.

Embora o historiador e diplomata pernambucano reconheça que para os japoneses “a esposa é ainda uma serviçal mais do que uma companheira, digamos uma companheira subalterna e dedicada”, não politiza essa condição e se detém em comparações com a condição das mulheres europeias, demarcando determinantes culturais. Ao tempo em que revela que “As japonesas levam a vantagem de que quase todas se casam (…), sendo raríssimos os celibatários.” E acrescenta: “Pode-se dizer que não há mulher desprovida de apoio conjugal, e o encontro de uma mulher solteira, passada certa idade, suscita logo a pergunta insidiosa do motivo que a privou de encontrar um marido” (p. 223).

Bela, recatada e do lar, metáfora malformulada da real condição imposta às mulheres, nas mais diferentes culturas, em grande medida à base da violência física e ideológica dos homens, individualmente e sociologicamente falando, é dissecada na tela por Mizoguchi. Não à toa, os homens são tratados nos filmes como canalhas, a despeito das análises que relacionam a história de vida do diretor – nem um pouco exemplar, em relação às mulheres – com sua própria obra de arte.

A condição da mulher no centro nervoso da filmografia de Kenji Mizoguchi vem acompanhada de temas, como a tirania dos poderosos (O intendente Sansho, 1954), a degradação (Oharu, a vida de uma cortesã, 1952), arte e sacrifício (Crisântemos tardios, 1939), a ternura (Elegia de Osaka, 1936), o amor e a morte (Os amantes crucificados, 1954), o humano asqueroso (Rua da Vergonha, 1956, último filme do diretor), cujas narrativas capturam o expectador pela intensidade dramática, poética, no seu sentido mais profundo, humano, analítico. Como se refere Fernando Oriente, Mizoguchi fala primeiro ao coração, depois à razão. 

Assistir aos filmes de Mizoguchi, sobre momentos diversos e distantes uns dos outros da história do Japão, nos dá a certeza de que a condição social da mulher é universal. Abandono, feminicídio, exploração sexual, interditos sociais, raciais, religiosos, sexuais, políticos, jurídicos, humilhação no mundo do trabalho e na sociedade, subjugação, entre tantas outras formas de violência contra as mulheres estão refletidas no grande espelho-tela da cinematografia mizoguchiana. 

Se a arte nutre-se de constrangimentos, como se refere Éric Rohmer, assistir a um dos filmes de Mizoguchi, no Dia Internacional da Mulheres, poderá nos levar a compreender as diferentes dimensões da luta feminista ao redor do mundo. Contos da lua vaga depois da chuva, prêmio Leão de Prata, 1956, no Festival de Veneza, é uma entrada importante neste universo, pelas lentes admiravelmente contemporâneas de Kenji Mizoguchi.

Referências 
Nagib, Lúcia (orga.). Mestre Mizoguchi: uma lição de cinema. São Paulo: Navegar Editora, 1990.
Lina, Oliveira. No Japão: impressões da terra e da gente. 3a Ed., Rio de Janeiro: Topbooks, 1977. 

Links

Alguns filmes de Kenji Misoguchi: https://www.youtube.com/playlist?list=PLvxZ4hJhtdLwarGOL_7SR-SMRJGt5CO9l

Era uma vez em Tóquio (1953), de Yasujiro Ozu : https://www.youtube.com/watch?v=66VC0CMl8SQ

Pai e filha (1949), Yasujiro Ozu: https://www.youtube.com/watch?v=gaHkkREqoU4

Angelo Brás Fernandes Callou é Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova Lisboa.

Fotos: divulgação.

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Angelo Brás

Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova Lisboa.

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