O romance de estreia do cearense Stênio Gardel, A palavra que resta, lançado pela Companhia das Letras, vem atestar o talento da nova geração de escritores brasileiros, como Itamar Vieira Junior, autor do premiado Torto Arado, Jeferson Tenório (O avesso da pele), Daniel Galera (Barba ensopada de sangue), Eliana Alves Cruz (Água de barrela) e Vidal Porto (Cloro), dentre tantos outros.

Com uma linguagem criativa, inovando na condução das vozes dos personagens, Stênio Gardel narra a trajetória de Raimundo Gaudêncio de Freitas, que nascido no sertão nordestino, trabalhador da roça sem ter tido a chance de ir à escola, apaixona-se por seu grande amigo Cícero. Ao serem flagrados juntos, as duas famílias os separam: Cícero desaparece, deixando somente uma carta ao amado, que é expulso de casa pela mãe. Raimundo começa a trabalhar como ajudante de caminhoneiros e durante 50 anos permanece analfabeto; aos 71 anos quer aprender a ler para saber o que o amado havia lhe escrito.

Stênio Gardel, natural de Limoeiro do Norte/CE: inova no 1º romance

O leitor vai tomando ciência de tudo o que ocorreu na vida de Raimundo de forma paulatina. Sem manter uma ordem cronológica dos fatos, o autor a cada capítulo narra um momento da trajetória do sertanejo: num capítulo Raimundo está idoso e luta com seus fantasmas internos para aprender a ler e a escrever e superar o próprio sentimento homofóbico que internalizou. No próximo capítulo, Raimundo é jovem, trabalha na roça ajudando o pai Damião e não larga o amigo Cícero. Desta maneira, como peças de um grande quebra-cabeça, o leitor vai construindo o trajeto da vida de Raimundo.

Dividido em quatro partes, o livro chama a atenção pela linguagem inovadora. O autor intercala o narrador em terceira pessoa — forma comum de se contar uma história — com a voz do personagem, em primeira pessoa. De uma frase para outra há a mudança de narrador. É desta forma criativa que tanto Raimundo é apresentado na trama como as diversas outras vozes vêm à tona, como Caetana, mãe de Raimundo, Marcinha, irmã dele, Cícero, o caminhoneiro Alex e a travesti Suzzanný, que inicialmente entrou em atrito com Raimundo, mas depois se tornaram amigos e parceiros.

“Os dois deitados sob a copa fechada do cajueiro, o sol espreitando entre as folhas. Um beijo no pescoço, Raimundo se contorcia destorcendo os nós que lhe vinham à cabeça quando ficavam juntos, pensando que era coisa errada o que eles faziam. Sei que é bom pra mim e pra ele, e conheço Cícero faz tempo, mas quando a gente era mais novo não pensava que isso podia acontecer, pensava?”

Além da narrativa que instiga e prende o leitor, outro elemento contribui para que não se deixe de lado o livro: a carta de Cícero para Gaudêncio (a forma como Cícero se refere ao amado). Como Raimundo é analfabeto, ele não abre a carta, não quer que ninguém a leia e a mantém sempre muito bem guardada, durante mais de 50 anos!

“A carta, fechada no bolso da camisa, fechada nas mãos de Raimundo ao lado da cruz do rio, na mão direita pendurada para fora da janela do caminhão, dentro da bolsa de palha, nas mãos de Raimundo, as mãos que tocavam Cícero, fechada dentro de uma bolsa de náilon na boleia do caminhão…”

Em A palavra que resta, mais que relatar a triste e tumultuada vida de Raimundo, Stênio Gardel revela o universo conservador e tradicional do sertão brasileiro ao mesmo tempo que, por meio da aventura do personagem central, demonstra saídas para romper o preconceito, principalmente a própria homofobia internalizada. Raimundo ao lado de outras pessoas também excluídas (como a travesti Suzzanný) reinventa a própria existência. O final é surpreendente.

Ficha técnica:

Título: A palavra que resta

Autor: Stênio Gardel

Editora: Companhia das Letras, 160 páginas

Preço: R$47,92

Maurício Mellone é jornalista com mais de 40 anos de estrada. Fez carreira na imprensa de São Paulo – rádio, TV, impresso e assessoria de imprensa. Hoje mora no Recife e, aqui no Blog Edgard Homem, escreve sobre a literatura produzida por autores brasileiros. Maurício também tem um espaço só seu: vai lá no www.favodomellone.com.br.

Fotos: divulgação.

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Maurício Mellone

Jornalista com mais de 40 anos de estrada, fez carreira na imprensa de São Paulo – rádio, TV, impresso e assessoria de imprensa.

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