Sinos, se soam, nos ensinam. Basta escutá-los. Mas, se calam, que querem dizer?
Foram os badalos dos sinos da Catedral de Santa Águeda em Pesqueira que me ensinaram a distinguir os diferentes repiques, em várias horas do dia, dos anos. As lições eram tomadas da casa onde nasci (literalmente) e passei a infância, a poucos metros do campanário. Os sinos, diz a tradição católica, marcam o tempo divino.
Quatro tipos de anunciação podem ser lembrados (Gilberto Freyre alude a muitos outros no Recife dos anos 1930): no chamamento às missas, (não consigo descrever os dobres, mas, se voltar a ouvi-los, saberei do que se trata); na elevação da hóstia, se me recordo bem, um toque, com uma pausa, e dois outros seguidos, breves, contritos, respeitosos; no término das liturgias, sons ritmados, vigorosos, alegres; e quando alguém falecia, a pancada no sino era forte, única, com breve pausa para o próximo estalo. Momento em que já imaginava o cortejo fúnebre pelas ruas da cidade, tão comuns àquela época. Com essas pausas, entre o soar dos sinos, aprendi a respeitar a dor do outro.
A adolescência foi igualmente embalada pelo badalo dos sinos, do Colégio Salesiano, no Recife, onde estudava e morava em frente à Igreja. Depois dessa fase, sumiram os sons de bronze da minha vida.
Por gostar tanto do rumor dos sinos, eles me acompanham mundo afora. Muitas vezes, quando viajo, basta chegar próximo a uma igreja católica, para ouvir, por mera coincidência, e sempre com muita alegria interior, os sons da infância.
Numa dessas viagens, diante de um repicar de sinos, cheguei a comentar com um amigo, que sabia por quem os sinos dobram. Referência ao conhecido e premiado filme de 1943, baseado num livro homônimo de Ernest Hemingway.
– E por quem?
– Por mim, claro!
Dias depois, sob as colunas descomunais de Gian Lorenzo Bernini, na Praça de São Pedro, no Vaticano, os sinos dobravam novamente. Agora, eram os da Basílica da Santa Sé. Retomei a brincadeira e lhe disse que meu prestígio estava indo longe demais. Ríamos.
Mas, quando colocamos os pés na esplanada da Catedral de Notre-Dame, em Paris, e os bronzes medievais começaram majestosamente a ressoar, decidi não aludir mais por quem os sinos dobram. Uma emoção diferente aconteceu. Faltavam quinze minutos para as dezenove horas. Considerei, dentro das minhas excentricidades, a recorrência dos acontecimentos como uma anunciação importante.
Entrei imediatamente naquele templo imenso de pedra, penumbra e luz. Assisti à missa sozinho, numa daquelas cadeiras individuais. Senti-me insignificante, diante das altas colunas e das estupendas rosáceas de vitrais de Jean de Chelles, iluminadas pelo que restava de luz lá fora. Descobri que os sinos dobram por todos nós, pobres mortais!
Tudo isso veio à memória, ao ler Os Sinos da Cidade, no Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife, de Gilberto Freyre.
Breve e bem-humorada, essa crônica termina num parágrafo repleto de ironia e preocupação. Diz Freyre, em 1934: “Ainda não houve ‘progressista’ que se lembrasse de arrancar os velhos sinos do Recife às torres das igrejas e recolhê-los ao Museu do Estado. Ainda há sinos não só que tocam, no Recife, mas que se conservam intocáveis. Intocáveis e como que prontos a clamarem contra aqueles modernizadores da Igreja e da Cidade que se excedam nos seus furores ‘progressistas’” (p. 45).
2023. Dia de São José. Com os horários das missas nas mãos, do domingo nublado, escolho dez igrejas históricas da cidade do Recife, a maioria delas no Bairro de São José. Será que os sinos ainda nos convidam à liturgia e nos agradecem ao final em regozijo? Ou será que o Museu do Estado já recolheu todos eles ao patrimônio público? Seja como for, trinta minutos antes do culto me posiciono ao redor das igrejas à espera do badalo nas torres.
A primeira visita foi à Basílica de Nossa Senhora do Carmo (1767), padroeira do Recife. Pergunto a gente laica da igreja, em que momento os sinos vão tocar. Só durante a semana é possível apreciá-los, ouvi como resposta. E eu que acreditava que as missas aos domingos eram especiais, e que o conceito de Basílica, devido ao seu caráter pomposo, ajudaria a ouvir, com facilidade, o tilintar vindo do campanário.
Como os bronzes da nossa padroeira não ressoam aos domingos, atravesso o Pátio do Carmo e a avenida Dantas Barreto ao encontro da Catedral de São Pedro do Clérigos (1782). Belíssima, barroca, restaurada, aberta ao rebanho. Olho para as torres e não vejo os sinos. Estarão no Museu do Estado? Penso, involuntariamente, diante do desapontamento.
Caminho alguns metros e escuto as dobradiças se moverem na porta central da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos (1662-1667). Sou o único a entrar no templo, antes do início da missa.
A simpática senhora que me recebe, sem estranhar o cachorro ao meu lado, me informa que os sinos, devido à necessidade de reparos, não soam mais. Começo a considerar que Gilberto Freyre pressentia, com certa segurança, o que constato agora.
Com meu espírito católico já precário, vou em direção à Igreja Nossa Senhora do Divino Espírito Santo (1690), na Praça Dezessete, no Bairro de Santo Antônio. Espécie de irmão siamês do Bairro de São José, de tão próximas as igrejas estão uma das outras. Sem mais surpresa, me dizem: os sinos não tocam mais! A estes se juntaram seus vizinhos, os da Basílica da Penha (1882), da Igreja de Nossa Senhora do Terço (início do Século XVIII), da Igreja de Santa Rita de Cássia (1868-1870) e da Igreja de São José do Ribamar (segunda metade do século XVIII, atualmente fechada para restauro). Todas no São José.
Como um náufrago esperançoso, agarrado a um pedaço de madeira que boia, atravesso o rio Capibaribe e alcanço a Igreja Madre de Deus (1709), no Recife Antigo.
Igreja lotada de fiéis. Prometem-me que os sinos tocarão. De fato, escutei breves sons, antes da missa e na consagração. Não houve agradecimentos em badalos ao final do culto.
Não me dou por satisfeito. Quero ouvir mais. Atravesso o rio de volta, em direção à Igreja de Nossa Senhora do Livramento dos Homens Pardos (final do século XVII), espécie de porta de entrada no Bairro de São José. Última parada da romaria dominical. As ruas estão desertas e o casario parece mal-assombrado. Se bem cuidado e preservado, este belo Bairro de São José seria nosso Marais parisiense. O Camelódromo, nosso Beaubourg.
Infelizmente, os gestores públicos, em seus furores progressistas, diria furores kitsch e deslumbrados por edifícios à la Miami Beach (com muita grana circulante por debaixo das edificações, assim informa o filme Aquarius, de Kleber Mendonça), ignoram qualquer memória, ou vestígio dela. O trabalho fotográfico do casario recifense, no Antes que Suma, projeto do jornalista Jota Nogueira, nos apresenta este estado de coisas.
As ameaças ao patrimônio arquitetônico da cidade do Recife, do que fomos-somos hoje, caem, diuturnamente, no sumidouro da cidade Maurícia. Um homem sem memória, dirão os historiadores, é um ser em processo permanente de mortificação. Nem os sinos clamam mais pelo Bairro de São José.
Com um olho nos sinos, outro na missa, assisto ao culto das escadarias da referida Igreja do Livramento: o dia era de São José; o templo é a porta de entrada ao Bairro de São José; o jovem padre que celebrou a liturgia se chama José e comemorava o seu primeiro ano de sacerdócio nessa paróquia onde se ordenou. Creio que foi por eles e pela preservação daquele sítio histórico (quem sabe por mim também) que os sinos finalmente clamaram antes, durante e depois da liturgia.
Viva São José!
Referências
Freyre, Gilberto. Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife. 5.ed – São Paulo : Global, 2017.
Nogueira, Jota. Antes que suma. https://www.facebook.com/antesquesuma?mibextid=LQQJ4d
Sinos tocam na Igreja do Livramento, Recife, 19 de março de 2023.
Angelo Brás Fernandes Callou é Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova Lisboa.
Foto dele: divulgação.
Fantástico.
Já que mencionou a “Praça do Dezessete”, sugiro ouvir este curioso áudio do prof. Manuel Gandra, sobre ela: https://youtu.be/xYt1oV44MEc
Apesar da degradação, esses resquícios que sobram ainda são suficientes para deixar lembranças àqueles que captam seus significados, e quem sabe levá-los adiante — restaurando-os!
O enfoque que foi dado às igrejas em particular, me agradou bastante também, revelando certas características de personalidade do autor. Excelente texto!