Lançado pela Companhia das Letras, livro chega 5 anos após O sol na cabeça, coletânea de contos que apresentou o autor ao mundo. Romance narra a vida de 5 rapazes durante instalação da UPP na Rocinha

Depois do sucesso do livro de contos O sol na cabeça, lançado em 2018 e publicado em mais de dez países, a Companhia das Letras acaba de lançar Via Ápia, primeiro romance do escritor carioca Geovani Martins.

Com domínio da oralidade de quem mora nas comunidades cariocas, o autor neste romance retrata o cotidiano de cinco rapazes da Rocinha, comunidade da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Dividido em três partes, o livro mostra os momentos que antecedem a instalação da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) na favela, a ruidosa chegada dos policiais e por último a partida silenciosa deles, com a volta dos bailes funk na comunidade.

Com uma bela capa que reproduz o quadro Trem, de Maxwell Alexandre, o livro é composto de três partes, com capítulos curtos, sempre com títulos que trazem a data que ocorre a narrativa. Assim o leitor tem a chance de acompanhar o cotidiano dos cinco rapazes: os irmãos Washington e Wesley que moram com a mãe, Dona Marli, e Douglas, Murilo e Biel, que dividem uma casa próxima ao ponto de ônibus, na Via Ápia, a rua comercial e mais movimentada da Rocinha.

A trama central é o perfil de cada um destes rapazes, com o relato de suas dificuldades para conseguir dinheiro para o sustento, suas paixões e amizades, seus sonhos e como arranjam tempo para se divertir. O pano de fundo da história deles é a instalação da UPP na Rocinha, a estratégia do poder público na guerra contra as drogas. Na primeira parte da obra os moradores convivem com a expectativa da chegada dos policiais; a segunda parte retrata a truculenta e tumultuosa invasão policial. Já a terceira parte revela a retirada silenciosa da força policial, depois de muita violência, e a volta dos bailes funk.

No primeiro livro de Geovani, o conto A história do Piriquito e do Macaco já fazia referência à chegada da UPP na favela; desta vez o autor retrata o fato por intermédio da trajetória dos rapazes.  E a marca principal do autor está realçada no romance: sua facilidade em reproduzir a fala dos jovens da favela, com gírias e o modo peculiar do carioca falar. Numa conversa entre os rapazes, a forma criativa dos diálogos também chama a atenção:

“Hã, tinha que ver, menó, mó terrozinho do caralho. Os cana já chegou como, fuzil na cara, mão na parede e pá e tal, a gente ficou, porra, baqueado, fala tu; só naquela de calma, meu senhor, geral aqui é trabalhador e coisa e tal. Tranquilo. Tava eu, mais o Cabelim, o Lesk e o Dodô, se não me engano. Aí, pega visão, tinha flagrante mermo, tá ligado? Eu tava crente crente que eles ia botar logo geral pra ralar. Hã, porra nenhuma. Os caras tonteou, mas tonteou bonito. Papo deles era de saber onde é que tava a boca. Fala tu, eles acha que é assim, que X9 nasce em árvore nessa porra. Hã, num fode. Ficou geral como, meu senhor, eu só sei que nada sei, se ligou? Pra quê, neguim. Aí que eles choqueou mermo….”

Na trama o autor intercala o narrador com as falas dos personagens. No início o leitor pode não identificar de imediato quem é o personagem, mas com o desenrolar da história logo se percebe de quem se trata. Em outra passagem, Gleyce, amiga de Washington, diz que desistiu de ser cineasta, quer ser jornalista:

“Cada dia ficava mais bolada com a forma que via o morro nas notícias. Ela falou da importância de ter gente de dentro contando aquelas histórias, com o ponto de vista do morador pro que vinha acontecendo.”

Sem dúvida este é um pensamento que Geovani Martins põe em prática em sua literatura: suas histórias têm como protagonistas os moradores das comunidades cariocas. É desta forma que há a identificação com o leitor, que se envolve desde o início e se emociona com a trajetória dos garotos. O que também me chamou a atenção na trama é o fato de que a crítica ao modo de atuar dos policiais não vem dos personagens centrais e, sim, do padre durante a missa de sétimo dia de uma vítima de bala perdida:

“O que acontece hoje na comunidade da Rocinha é um plano político. Como será possível, num lugar onde todos sofremos com a falta de saneamento, com a falta de luz, a falta de espaço? Nossas escolas estão numa situação deplorável. E, no meio de tudo isso, a resposta do Estado qual é? Enviar centenas de policiais despreparados. Um monte de armas. Cadê o tratamento de esgoto? As medidas de proteção pra área de risco? Há vinte anos eu sou morador, e fico me perguntando: o que mudou, de verdade, no último ano na vida dessa comunidade?”

Outro fato histórico que culminou com a retirada policial da favela foi o caso Amarildo, um pedreiro que foi preso, levado à sede da UPP e depois apareceu morto. O caso teve repercussão nacional e posteriormente os policiais envolvidos foram condenados. No livro o caso é somente citado, pois o autor dá ênfase ao vínculo de amizade entre os cinco rapazes e o modo como os moradores respondem ao arbítrio:

“A batida entrou na sequência e na mesma hora todo mundo começou a dançar…  E era a vida — sempre ela e nunca a morte — o que fazia aquele chão tremer.”

Num bate papo com o público quando do lançamento do livro de contos, Geoavani confessava que escrever um romance era um desafio pessoal. Em Via Ápia está mais do que provado que o autor venceu suas limitações: em mais de 300 páginas o autor mantém o vigor narrativo, com pleno domínio na construção dos diálogos. Com uma trama bem articulada e de grande emoção, o autor envolve o leitor do início ao fim.

Ficha técnica:                                                         

Título: Via Ápia

Autor: Geovani Martins

Editora: Companhia das Letras, 344 pgs

Preço: R$ 64,90

Maurício Mellone é jornalista com mais de 40 anos de estrada. Fez carreira na imprensa de São Paulo – rádio, TV, impresso e assessoria de imprensa. Hoje mora no Recife e, aqui no Blog Edgard Homem, escreve sobre a literatura produzida por autores brasileiros. Maurício também tem um espaço só seu: vai lá no www.favodomellone.com.br.

Fotos: divulgação.




Maurício MelloneAuthor posts

Maurício Mellone

Jornalista com mais de 40 anos de estrada, fez carreira na imprensa de São Paulo – rádio, TV, impresso e assessoria de imprensa.

Sem comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

quinze − cinco =