Para Carol Dubeux
Escavei bem a memória. Foi o livro As ligas camponesas (1982), de Fernando Azevêdo, que me levou a Cuernavaca, México.
Mergulhado na pesquisa movimentos sociais na pesca, deparei-me com a primeira e única referência a Ligas de Pescadores. Mais especificamente, no documento Organização Política das Ligas Camponesas no Brasil, anexado ao livro de Azevêdo.
À primeira vista, parecia um tema nunca apalpado pela literatura sociológica. E era. Estava apenas à espera dos curiosos acadêmicos. Foi quando decidi procurar para uma entrevista o advogado e líder político das Ligas Camponesas, Francisco Julião. As Ligas Camponesas (1955-1964) tinham a reforma agrária como bandeira de luta do movimento social no campo.
O contato com Julião foi feito por telefone – e não precisei revelar que meu pai tinha sido seu colega de turma na Faculdade de Direito do Recife, só o fiz posteriormente. Ele, gentilmente, marcou encontro comigo na sede do PDT, no Recife. Era 30 de maio de 1984. Assim está gravado na fita cassete da entrevista, que guardo até hoje como recordação.
Apesar da agradável conversa, Julião pouco tinha a dizer sobre as Ligas de Pescadores. Forneceu-me, entretanto, de memória, dois ou três nomes de líderes do movimento, para avançar na empreitada acadêmica. O resultado desse trabalho encontra-se no artigo “Ligas de Pescadores na Imprensa de Pernambuco” (Cadernos de Jornalismo e Editoração ECA/USP, 1991), no qual analiso as dificuldades de relacionamento político entre pescadores e camponeses que, de alguma maneira, impossibilitaram a criação das Ligas de Pescadores no Brasil.
Desligado o gravador, fiquei conversando com Francisco Julião. Ele falava pausadamente, como a refletir sobre cada palavra ou frase a ser dita. Não percebia nenhum sinal para encerrar a conversa, mesmo considerando o jovem e inexperiente pesquisador, que eu era. Na verdade, um projeto de pesquisador, entrevistando uma figura histórica de envergadura, da qual ouvira falar desde criança.
Como sou aficionado por baús da memória, acervos pessoais ou públicos (quanto mais secretos, mais eu gosto), lembro que fiquei curioso, quando Julião se referiu ao seu acervo documental, guardado num cofre em Cuernavaca. Cidade em que se exilou, depois de ser preso e solto pela ditadura militar, em 1965.
Julião volta a Cuernavaca em 1988, para escrever suas memórias. Afinal, seu acervo pessoal estava por lá. Veio a falecer nessa cidade, em 1999, em um dia como o de hoje, 10 de julho. Tinha 84 anos. Entrou para a história dos que lutaram a vida inteira contra as desigualdades sociais no Brasil. Francisco Julião juntou-se aos homens imprescindíveis, de que fala Bertolt Brecht, no poema Há homens que lutam um dia, e são bons.
Fui a Cuernavaca.
Há muito, sigo os ensinamentos primorosos da minha colega e psicóloga Carol Dubeux, quanto à necessidade de, no trabalho, abrir espaços para a arte, a cultura e o lazer. Bem sei dos olhares enviesados “acadêmicos” para esse tipo de aprendizagem. Olhos que nunca se debruçaram, ouso dizer, sobre Paulo Freire, ao escrever que se aprende também olhando as nuvens passarem no céu!
Minhas três viagens ao México sempre estiveram ligadas a congressos acadêmicos, mas sem abrir mão, jamais, do que está para além dos campi universitários.
Como ir ao México e não visitar a casa Frida Kahlo? Como não admirar os murais de Diego Rivera? Como não se sentir ignorante diante da riqueza cultural pré-colombiana, exposta no Museu Nacional de Antropologia? Como não ir à Plaza Garibaldi, para ouvir, de pertinho, os grupos musicais mariachis, que tanto ouvira na vitrola de minha avó espanhola? Como passar incólume aos aromas dos tacos, alimento à base de milho, recheado das mais distintas iguarias populares, vendido nas ruas das Cidade do México, Querétaro, Teotihuacán, Texcoco, en todos los lugares? Como não entrar na majestosa catedral de Puebla? Como não relembrar A Conquista da América: a questãodo outro, livro de Tzvetan Todorov (sobre a negação/destruição da cultura asteca, pelos espanhóis), ao visitar as ruínas do palácio do imperador asteca Montezuma, nas proximidades da Plaza de la Constituición – El Zócalo? Praça repleta de indígenas aos domingos, com suas benzeduras de folhas esfumaçadas em aromas inesquecíveis. Como não ir a Cuernavaca, cidade de que jamais ouvira falar, exceto por Francisco Julião.
Como todo imaginário construído sem uma articulação com a realidade concreta frustra o sonhador, a viagem a Cuernavaca foi uma decepção. Acho que reuni no imaginário Francisco Julião e a antiga cidade histórica de Cuernavaca, sem me atentar ao seu cotidiano contemporâneo.
Depois de persuadir para essa viagem meus amigos Maria Salett Tauk Santos, Maria Luiza Lins e Silva Pires e Jimmy Mc Intyre, alcançamos uma Cuernavaca caotizada pelo trânsito, a exigir redefinição imediata de percurso. Acenei, então, para espicharmos até Acapulco. Proposta negada, persuasão evitada, qual uma empresa em descrédito diante dos clientes. Fechei as portas para balanço e me debrucei sobre o livro México, de Erico Veríssimo, relato imprescindível de sua viagem àquele país, em 1954. Uma prova cabal, de que o trabalho, seja ele qual for, é indissociável da arte e da cultura.
Referências
AZEVÊDO, Fernando. As ligas camponesas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
CALLOU, Angelo Brás Fernandes. Ligas de pescadores na imprensa de Pernambuco. Cadernos de Jornalismo e Editoração. São Paulo: Eca/USP, V.12, n. 28, p.83-152, dez., 1991.
TODOROV,Tzvetan A conquista da América: a questãodo outro. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
VERÍSSIMO, Erico. México. Rio de Janeiro: Globo, 1964.
Foto em destaque, Francisco Julião: capturada do site Zona Curva.
Foto Mural Diego Rivera Palácio Nacional: divulgação.
Foto da Catedral de Puebla, México: Captain Park.
Foto do autor: divulgação.
Sem comentários