Wilson era ainda uma criança quando encontrou uma máquina fotográfica quebrada e a levou para consertar. O rapaz que fez o conserto mostrou como funcionava.

Aos 17 anos, Wilson saiu em expedição pelo interior de Pernambuco como assistente do fotógrafo austríaco J. Kaltnek, na função de retratista de lambe-lambe.

Em 1943, aos 24 anos, já casado com a fotografia, Wilson constituiu família ao lado de Conceição, com quem teve cinco filhos. Todos, de alguma forma, contribuíram com o negócio de registrar, revelar negativos, atender clientes e vender fotografias, principalmente os mais velhos, que dividiam o espaço de casa com o laboratório do pai; as fotos secavam em varais improvisados para serem entregues no dia seguinte aos clientes. Estas são algumas das memórias, até então familiares, reveladas agora na publicação Wilson Carneiro da Cunha: do Instantâneo de Rua aos Registros Caseiros, que será lançada hoje, quinta-feira, 28 de setembro de 2023, a partir das 18h, na Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ) do Derby.

Em formato de e-book, com distribuição gratuita e em conformidade com as Diretrizes de Acessibilidade para o Conteúdo da Web (WCAG) – Perceptível, Operável, Compreensível e Robusto, a publicação traz 164 imagens, além de artigos sobre a obra de Wilson e o contexto histórico, filosófico e sociocultural onde ela está inserida.

O lançamento será acompanhado da exposição com 40 fotos originais de Wilson Carneiro da Cunha e bate-papo com a equipe de pesquisa, coordenada por sua neta, a fotógrafa e arte educadora Bia Lima, que divide a curadoria, autoria e organização da publicação com a pesquisadora e artista, Bruna Rafaella Ferrer. Na ocasião, haverá tradução simultânea na Linguagem Brasileira de Sinais (Libras).

Mapeamento

Foram dois anos de trabalho de uma equipe empenhada em mapear e sistematizar o acervo alimentado durante 40 anos pelo repórter fotográfico Wilson Carneiro da Cunha, também conhecido como Wilson do Kiosque, o fotógrafo do Recife ou mesmo o fotógrafo ímpar, como ele mesmo estampou na fachada do Kiosque do Wilson – nome do estabelecimento para serviços fotográficos, onde atuou entre 1951 e 1983, na Rua Nova, na calçada da igreja de Santo Antônio, Centro do Recife. A ideia da curadoria foi, segundo Bia Lima, fazer um registro fotobiográfico de WCC, destacando seu olhar ‘curioso, instintivo e engraçado’.

Flagrantes

Entre os ‘achados’ que a pesquisa ao acervo propiciou, Bia Lima destaca o apreço de Wilson aos flagrantes, tanto na esfera pública, onde ficou conhecido pelos ‘instantâneos de rua’, quanto na esfera familiar, com flagras da vida caseira, as poses dos animais domésticos, as crianças dormindo no sofá. ‘Descobrimos essa unidade, dos flagrantes. Segundo minha tia (Olegária, filha de Wilson), ele comprava os filmes para fazer o trabalho dos clientes e a sobra usava com a família. Ele saia da rua, mas a rua não saia dele’.

Nessa mesma linha, a pesquisa identificou o gosto de Wilson por produzir fotos em série, igualmente com o protagonismo dos filhos e esposa, em temas diversos: a geladeira nova, as capas de revista, a inundação da casa nas famosas enchentes no Recife da década de 1970. ‘Ele dirigia as cenas, como uma fotonovela’, conta.

Wilson e Conceição Carneiro da Cunha.

O fascínio dele pelo cinema e por artistas hollywoodianos, segundo Bia Lima, fica evidente nas fotos que fazia da esposa, ‘com alguma produção cinematográfica’. E por um desses acasos do destino, tem a assinatura de Wilson Carneiro da Cunha a foto escolhida por Kleber Mendonça Filho para ilustrar o cartaz do seu Retratos Fantasmas, filme lançado recentemente, que fala com nostalgia dos cinemas de rua da capital pernambucana. A foto é um registro carnavalesco, com um grupo de palhaços mascarados, na Avenida Guararapes.

Retratos Fantasmas – essa foto é de Wilson Carneiro da Cunha. Eita vida.

‘Wilson foi inovador e extremamente criativo. Deixou uma marca para a contemporaneidade que vai além da atuação no campo da Fotografia.  Eu vejo a sua contribuição também no campo do Design, da Arquitetura, da Comunicação. A maneira de se comunicar com as pessoas e a identidade visual que ele cria é muito forte. O modus operandi, a forma como ele faz o registro rápido de alguém, depois se aproxima e entrega o comprovante para a pessoa ir buscar a foto revelada no dia seguinte’, define Bruna Rafaella. A pesquisadora vê, também, a contribuição de Wilson e do Kiosque, que servia como expositor de fotos, na democratização do serviço fotográfico. ‘Muito se fala da popularização da fotografia com a chegada ao mercado das máquinas mais baratas, mas não era para todos. Muitas pessoas se viram em foto pela primeira vez nas imagens de Wilson expostas no Kiosque”.

Moderno

‘Sempre que passava pela Rua Nova, olhava bastante curiosa para a banca que expunha uma multiplicidade de vistas fotográficas sobre o Recife e retratos de pessoas que me eram estranhas, instalada bem ali, na calçada ao lado da igreja de Santo Antônio’, conta a pesquisadora do CEHIBRA | Fundação Joaquim Nabuco, Rita de Cássia Barbosa de Araújo, no artigo O fotógrafo da Rua Nova: Wilson Carneiro da Cunha e o Recife Moderno, 1940-1980 e que integra a publicação. No texto, Rita de Cássia remonta a trajetória dos quiosques, a origem persa, a passagem pela Europa, até a chegada ao Recife, ainda no fim do século XX. E de como a grafia, à moda parisiense, capturou Conceição, a esposa de Wilson, leitora do mundo por meio das revistas de atualidades, que sugeriu batizar a banca de Kiosque do Wilson, um diferencial na movimentada rua do início da década de 1950.

Flagrante de um batedor de carteira. Isso aqui nunca foi para amadores.

Em outro artigo, O que vejo na fotografia de Wilson Carneiro da Cunha?, a historiadora Fabiana Bruce, professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco, onde coordena o Laboratório de Imagem e História, reencontra o acervo que conheceu em 2003, quando pesquisava a fotografia moderna no Recife na década de 1950, tema da sua tese, e faz considerações sobre acervo de WCC, situando-o entre o público e o privado, além de lançar luzes à obra ‘ainda pouco pesquisada’ do fotógrafo, suas motivações, o olhar ‘inusual’ que demonstra nas imagens. ‘Aprendi a ver em Wilson esse mostrar as coisas sem dizer, incisivamente, e nos atingir, pelo afeto’, destaca.

Histórico

Em 1983, com o desinteresse das pessoas pelos serviços do Kiosque, Wilson decidiu fechar e vender parte do acervo para a Fundação Joaquim Nabuco, que digitalizou a obra, que pode ser consultada na Villa Digital. Wilson Carneiro da Cunha: do Instantâneo de Rua aos Registros Caseiros é um projeto incentivado pelo Funcultura PE.

Em julho de 2022, por meio do perfil do projeto no Instagram, @kiosquedowilson, foi feito um chamamento à população para rastrear imagens adquiridas pela clientela de Wilson, facilmente identificáveis por algumas marcas que ele imprimia no trabalho. Depois de reveladas, todas eram devidamente creditadas com a assinatura Wilson ou Foto Instantâneo Wilson ou ainda Kiosque do Wilson em marca d’água no canto inferior. O fotógrafo também adotou carimbos no verso. Um recorte das fotos captadas entre seus clientes faz parte do e-book.

Detalhando

Exposição no térreo, na Sala de Leitura Nilo Pereira (em cartaz até 3 de outubro), e bate-papo na Sala João Cardoso Ayres, 1º andar.

A Fundação Joaquim Nabuco fica na Rua Henrique Dias, 609, Derby.

Obviamente que todos os registros são de Wilson Carneiro da Cunha.

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Edgard Homem

Por aqui transitam a arte e a cultura, o social – porque é imprescindível dar uma pinta de vez em quando, as viagens, a gastronomia e etc. e tal.

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