Há poucos dias, tive a grata surpresa da inauguração do projeto Os Sinos Tocam no Centro, todos os dias, às 15horas, iniciativa da Prefeitura do Recife.

Não faz muito tempo, escrevi neste blog uma crônica, Os Sinos não Clamam mais pelo Bairro de São José, sobre o silêncio dos campanários nas igrejas históricas da cidade do Recife. Este meu interesse pela sonoridade dos sinos me levou a conferir, sem vacilar, os badalos do projeto no Bairro de Santo Antônio. A Rádio Folha de Pernambuco informa que há visitas guiadas às torres.

Antes da inauguração, almocei a charque desfiada do Hotel Central, um dos pratos servidos por Rosa, chef do Tempero de Rosa e empresária desse edifício histórico, em funcionamento desde 1928. Rosa assumiu o empreendimento em meio à pandemia da Covid-19. Pode-se dizer que o Hotel Central é um dos sobreviventes do flagelo entre as empresas prestadoras de serviços e estabelecimentos comerciais de Pernambuco.

Hotel Central, Boa Vista, Recife, inaugurado em 1928.
Foto: divulgação.

É um privilégio estar na varanda do primeiro arranha-céu do Recife, que hospedou Orson Welles, Carmen Miranda, Getúlio Vargas… Rosa é hoje a base estrutural de resistência do Hotel, em meio à falta de apoio dos setores público e privado, com o patrimônio arquitetônico-cultural da cidade. Que o diga o filme Retratos Fantasmas (em cartaz), de Kleber Mendonça Filho, e a casa em ruínas em que viveu a escritora Clarice Lispector, situada a poucos metros do Hotel Central.

Com meu fiel escudeiro do lado (Kalu), dirigi-me à Catedral de São Pedro dos Clérigos, uma das igrejas centenárias do Centro. Mas os sinos não repicaram. Os sinos estão em reparo, me informa um estagiário de Turismo. Em compensação, ouvi os badalos uníssonos da Basílica Nossa Senhora do Carmo e da Igreja Matriz de Santo Antônio. Mas a emoção principal estava por vir, ao entrar, depois de muitas décadas, na Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares, na decadente Rua Nova.

Considerada uma das obras seiscentistas mais importantes do Brasil, a Conceição dos Militares está totalmente restaurada. Até os ateus se renderiam diante da estonteante beleza católica em ouro e madeira talhada, do teto ao retábulo, nos púlpitos laterais.

Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares, Recife. Foto: Callou, 2023.

Para arrematar a visita, os sinos ressoaram ao sair da igreja. Já havia passado das 15horas, destoando, portanto, do horário combinado para os badalos no Centro. Sempre acho, nas minhas excentricidades, que os sinos dobram por mim, devido às recorrentes coincidências do repicar dos sinos, quando me aproximo das igrejas. Brinco com o tema na crônica mencionada. Desta vez, as badaladas se estenderam como nunca.

De tão satisfeito com a experiência, decido caminhar pelas ruas mal-assombradas do centro, revivendo Retratos Fantasmas. Isto é, revivendo a mim mesmo, ou a todos nós que amamos o Recife.

Por onde caminho, vejo lojas vazias de consumidores e prédios em ruínas. O tradicional Restaurante Leite resiste em meio à paisagem inóspita. Digo para mim mesmo, deve haver ali também uma Rosa resistindo ao empreendimento.

Vou em direção ao Cine São Luiz, atravesso a ponte Duarte Coelho, esvaziada de transeuntes, em plena terça-feira. Os sobrados, nas imediações do cinema, estão prestes a desabar. Olham para o rio Capibaribe, sem nenhuma esperança de manter sua história local. Quem se interessa por essa condição, quando os olhares kitsch, cafonas e deslumbrados, de quem comanda a política pública e de quem possui poder econômico, estão voltados para edificações, como as torres gêmeas, que fazem sombra sobre o Bairro de São José, e a Miami Beach, em construção no cais José Estelita.

Sobrados na Rua da Aurora, Recife. Foto: Callou, 2023.

Pela calçada da beira do rio, chego à Livraria Imperatriz. Lembro-me, imediatamente, de Clarice Lispector, pois, quando criança, sua “amiga”, filha do proprietário da loja, não lhe emprestara o livro desejado. Dentro do recinto, além dos livros, só fantasmas. Nem vendedores encontrei, para perguntar se podia entrar com o meu cachorro. Apenas vi Clarice tentando retirar de uma prateleira, muito acima de sua altura, Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Este foi o livro lhe negado. Alcanço-o para ela. Mas não tive como pagá-lo. Como disse, não tinha vendedores à vista, pois livros não são mais Esse Obscuro Objeto do Desejo. Buñuel explica!

Da cabeceira da ponte da Boa Vista, de volta à outra margem do rio, olho para trás, e ainda vejo Clarice com o livro na mão, saltitando pela rua da Imperatriz, em direção à Praça Maciel Pinheiro, onde mora; da porta-janela do primeiro andar de seu sobrado, hoje sem dobradiças e sem teto, Clarice chora, diante dos desvalidos da cidade, que habitam as calçadas da praça, sem nenhuma ação complacente do poder público. Só ela é capaz dessas grandezas do ínfimo, como revela a poesia de Manoel de Barros.

Casa em que viveu a escritora Clarice Lispector,
na Praça Maciel Pinheiro, Recife. Foto: Callou, 2023.

Na travessia da ponte, paro no meio do caminho. Relembro uma passagem marcante que se passa ali, no livro Seara Vermelha, de Jorge Amado, lido na adolescência. De propósito, não vou descrever a cena em que o abandono corrói a alma humana. Que cada um descubra em si o significado do desaparecimento do outro e das coisas inanimadas. Já não se vende mais envelopes com bordas verde-amarelas, entre as estruturas de ferro da ponte. Não há mais cartas. Quiçá, nem destinatários.

Edifício na Rua duque de Caxias, Santo Antônio, Recife.
Foto: Callou, 2023.

Na rua Duque de Caxias, recupero a esperança, diante de um prédio antigo, restaurado na cor rosa, com janelas em azul. Uma belezura. Acho que a esperança mudou de cor. Ela é cor-de-rosa.

Que badalem os sinos!

Recife, Praia do Pina, outubro de 2023.

O autor e Kalu, seu companheiro de andanças,
no belo e abandonado Centro do Recife.

PS: Angelo Brás Fernandes Callou é Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova de Lisboa.

Angelo BrásAuthor posts

Angelo Brás

Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova Lisboa.

3 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

dezenove + dezenove =