Lançada pela Editora Malê, obra conquistou o Prêmio Jabuti/2022, categoria contos, e traz 15 histórias sobre questões contemporâneas da negritude e críticas ao racismo estrutural da nossa sociedade

Com quatro romances publicados, incluindo Solitária/2022, a jornalista e escritora carioca Eliana Alves Cruz lançou seu primeiro livro de contos, A Vestida, pela Editora Malê. Nesta estreia da escritora com histórias mais curtas, seu livro foi reconhecido pela crítica: recebeu o Prêmio Jabuti/2022 na categoria contos.

O livro traz 15 histórias que retratam questões contemporâneas da negritude, além de crítica social, algumas ironizando o racismo estrutural da sociedade brasileira.

Na orelha do livro, o responsável pela edição assegura que as histórias dos contos estão mergulhadas na contemporaneidade, mas também trazem referências a ancestralidade africana.

“Os personagens não estão soltos nos vãos da história, nos espaços invisíveis aos quais as vivências negras quase sempre ficam relegadas, muito ao contrário, eles estão intimamente comprometidos com a vida e o tempo, iniciados em terreno ficcional bem elaborado”, diz o editor Vagner Amaro.

No primeiro conto, Cidade Espelho, a escritora utiliza de uma ironia ácida para denunciar as diferenças sociais e o racismo. No país fictício Justiçópolis, na Cidade Espelho, “metrópole reluzente refletindo o brilho alvo e limpo da terra de alvos e limpos humanos”, Narciso, um cidadão de bem, vê uma criança negra que corre para o interior da terra. Ele vai atrás da criança e descobre que abaixo há uma cidade em ruínas, uma espelho da outra. O desfecho de Narciso incita à reflexão.

Um tema já desenvolvido em Solitária — em que jovens rompem a estrutura familiar e pelo estudo conseguem melhores condições de vida —, é retomado pela autora em dois contos; em Não passarão o personagem Flávio em suas divagações lembra-se de sua alegria ao contar aos pais do ingresso no curso de matemática:

“O pai, cabeça baixa na mesa, tentava não chorar baixinho. Ele, um operário, teria um filho na universidade. A mãe, ao contrário, explodia de felicidade…”

Já no conto Formatura, é emocionante a volta de José para a casa da família no dia em que recebeu o diploma universitário:

“Afinal, não é todo dia que volta para casa um doutor: o doutor José! Estavam todos lá, esperando pelo primeiro dos seus com ‘o canudo’. A família, os vizinhos, os conhecidos.”

Os contos são curtos, quase todos narrados em terceira pessoa. Um deles, no entanto, A copa frondosa da árvore, a trama é narrada em primeira pessoa, por uma garotinha (será que é a própria Eliana criança?), que conta o ritual de sua avó para pentear seus cabelos:

“… pois àquela altura dos meus oito anos de vida minha cabeleira já assumia o volume das copas frondosas das árvores mais densas e o pente assumia feições de armamento pesado…

Eu, sentada no chão, presa naquelas coxas negras de tom suavemente amarelado….

Um tema atual bem difícil de se tratar, o bullying nas escolas, está presente em Noite sem lua; Marlene é uma garota que sofre muito com as amigas racistas. A forma como a autora desenha a evolução da menina é inusitada.

Gostaria de ressaltar outros dois contos. Em A passagem, a personagem Carolina ouve a voz da mãe, que estava do outro lado da vida. O leitor se surpreende com o final da história: qual seria a passagem que a autora se refere? Em A Vestida, que dá nome ao livro, o mais interessante é o recurso utilizado para se fazer uma análise da sociedade: a autora personifica objetos, mais precisamente, os vestidos:

“Olhei para os outros seis vestidos pendurados naquele brechó. Eles se levavam tão a sério…  Eu era o sétimo a ser pendurado naqueles cabides.”

Com uma linguagem clara e direta, histórias bem estruturadas e criativas, Eliana Alves Cruz envolve o público/leitor. Em alguns contos ela deixa em aberto o desfecho, talvez numa provocação para que quem esteja lendo crie o seu próprio final. Instigante!

Ficha técnica:                                                         

Título: A Vestida

Autor: Eliana Alves Cruz

Editora: Malê, 114 pgs

Preço: R$ 41,40

Maurício Mellone é jornalista com mais de 40 anos de estrada. Fez carreira na imprensa de São Paulo – rádio, TV, impresso e assessoria de imprensa. Hoje mora no Recife e, aqui no Blog Edgard Homem, escreve sobre a literatura produzida por autores brasileiros. Maurício também tem um espaço só seu: vai lá no www.favodomellone.com.br.

Foto em destaque de Eliana Alves Cruz: divulgação.

Foto2 e 3: divulgação.

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Maurício Mellone

Jornalista com mais de 40 anos de estrada, fez carreira na imprensa de São Paulo – rádio, TV, impresso e assessoria de imprensa.

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