Angelo, senti necessidade republicar o seu tributo aos 100 anos de Clarice Lispector.
Era 2020 e o mundo desabava em pandemia.
Esperávamos que desabasse, também, o sobrado da Praça Maciel Pinheiro, Boa Vista – aquele no qual a escritora passou a infância e há muito em decomposição por descaso.
À época, você dedicou o texto a empresária Rosa Maria, mulher preta que assumiu, n’O Dia Em Que a Terra Parou, a administração do Hotel Central.
Só por causa dela, o primeiro arranha-céu da capital não entrou para a lista de ruínas históricas, por descaso, do Recife.
Bem, tudo leva a crer que a Casa de Clarice Lispector vai virar museu (acompanhemos), a Maciel Pinheiro está cercada de tapumes (o que indica reforma), o Hotel Central está vivo e bulindo…
Coisas acontecem.
‘Resistir tem sido a palavra-chave para manter viva a cultura e arte na cidade do Recife’, disse-me Angelo e eu assino embaixo.
A seguir, o prometido texto.
Eternamente Clarice. Por Angelo Brás Fernandes Callou
(Para Rosa Maria, empresária do Hotel Central)
Clarice Lispector tem uma frase que devo muito a ela: “… é que eu gosto de ver as pessoas sendo.” Está no livro Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres.
Como uma espécie de mantra, essa frase me acompanha desde quando comecei a ter mais contato com a literatura dessa ucraniana-recifense-carioca-brasileira, a partir dos anos 1980. Observar as pessoas sendo é um ato humano. Mas as sutilezas do estar sendo, muitas vezes, exigem refinamento na percepção do observador, pois nem tudo é dado a ver, tal como o conceito de punctum, de Roland Barthes, em relação à imagem fotográfica, em A Câmara Clara. Isto é, há um interesse subjetivo, diz ele, que se impõe no ato de olhar uma fotografia.
Pierre Bourdieu era também um observador atento das pessoas sendo, característica revelada em Esboço de Auto-Análise. A despeito das questões éticas aí envolvidas, faz um mea-culpa no auge de sua maturidade intelectual, pois aceitou muitas vezes convites para festas e jantares, meramente com o intuito de observar as pessoas, consideradas por ele como agentes, sociologicamente falando, nesses espaços sociais.
Não há como não lembrar também de Clarice Lispector ao ler o extraordinário “O homem na multidão”, de Edgar Allan Poe. De impulso, o protagonista do conto se agasalha rapidamente, ao ver passar, de sua janela, um senhor idoso desconhecido, para segui-lo durante horas pelas ruas da cidade, observando todos os seus movimentos e atitudes, sem que ele se aperceba.
A literatura clariciana nos ensina a refinar nossa percepção sobre a condição humana, sempre à beira do abismo, ou, talvez, já nas suas profundezas. Não à toa a obra de Clarice Lispector tem despertado, ao longo dos anos, interesse entre os psicanalistas.
Ao ler Clarice, não foram poucas às vezes em que a chamei, carinhosamente, de bruxa, louca, vidente, sensitiva, e ficava a me perguntar como é possível ter tamanha compreensão da condição humana, em verdadeiras filigranas, que sua literatura evoca. Com delicadeza, vai modulando-demodulando a nossa existência, às vezes nominando o inominável, como o cheiro de peixe fresco, numa passagem de O Livro dos Prazeres. Ou o estar sendo, lírico, ingênuo, simples, esperançoso, de Macabéa, em A Hora da Estrela; ou, ainda, o silêncio-solidão da velhinha, na cabeceira da mesa, na comemoração dos seus 89 anos, no conto “Feliz aniversário.”
Clarice faz 100 anos. Está viva em todos os seus leitores. Sem ela, como posso compreender, em plena pandemia, o revigorante aroma de maresia que entra pela minha janela agora?
Imagem em destaque, aquarela da Casa de Clarice Lispector na Praça Maciel Pinheiro, pintada por Angelo Brás Fernandes Callou: divulgação.
Foto de Clarice Lispector: capturada do Google.
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