Fui tomado de impacto com a frase “Eu amo o centro do Recife”, repetida duas vezes no mais recente filme de Kleber Mendonça, Retratos Fantasmas, com lançamento no Brasil e em Portugal no dia 24 de agosto próximo.
Até então, achava que apenas eu amava as ruas e edifícios mal-assombrados dos bairros da Boa Vista, Santo Antônio e São José. Com toda a plateia aplaudindo ao final do filme, na pré-estreia recifense, no Teatro do Parque, percebi que somos muitos e diversos com nossos fantasmas.
Seguidas gerações aprenderam a mapear, palmo a palmo, as ruas centrais da cidade, em boa medida pelas mãos dos cinemas de rua, São Luiz, Art-Palácio, Teatro do Parque, Trianon, Moderno, Veneza, Glória e Boa Vista. Anos depois, pelo Ritz e Astor.
Apenas o Teatro do Parque e o São Luiz sobreviveram à expansão urbana – seus interesses econômicos e imobiliários – ao avanço exponencial das tecnologias eletrônicas e informatizadas, que nos colocaram na “telepresença a distância”, como se refere Paul Virilio, e, ainda, à má-fé e à ignorância. O cinema São Luís vive, ainda hoje, sob ameaça constante. Há um ano fechado! Sabe-se lá o destino desse templo da sétima arte no atual governo pernambucano.
Nunca me senti tão próximo de uma obra de arte, como em Retratos Fantasmas. E não estou sozinho nesse contato, ouso dizer. A primeira parte do filme está mais voltada ao próprio diretor, à sua mãe e às suas primeiras experiências com o cinema, no apartamento da família no bairro de Setúbal. Espécie de laboratório na construção do futuro personagem-diretor, repleto de excertos de seus filmes mais conhecidos, O Som ao Redor (2012) e Aquarius (2016). Da segunda parte em diante, somos todos nós, nossas próprias vidas, por assim dizer, nas imagens de arquivo pesquisadas por Karina Nobre e Cleodon Coelho, e do próprio arquivo pessoal de Kleber Mendonça, guardadas ao longo dos anos.
Parece pretensão, mas sou capaz de descrever a geografia de todas as salas de cinema acima mencionadas, inclusive táteis (o balcão de carpete vermelho do Veneza, por exemplo), exceto a do cine Glória, que entrei apenas uma vez para conhecê-lo, já em total decadência, e as salas de projeção.
Um dia, nas minhas andanças pelo centro do Recife, sempre nos finais de tarde, entrei na loja onde era o cine Moderno. Descrevi para mim mesmo, pormenorizadamente, a partir daquele salão, agora sem paredes, detalhes da sala onde assisti Terremoto (com grandes caixas de som instaladas no mezanino), Tubarão, O Império dos Sentidos, de Nagisa Oshima, numa intimidade, como se ali tivesse sido minha própria casa. Fui tomado pela emoção em meio a aparelhos de TV, móveis, máquinas de lavar roupa, ferros elétricos e liquidificadores. Diz o poeta Mario Quintana: “O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente.”
Quando as câmeras de Kleber Mendonça percorrem o cine Veneza e o Art-Palácio, superpondo imagens da ascensão e decadência dessas salas, é emocionante e estarrecedor. Esse vaivém de temporalidades, que Paul Veyne aborda em Como se Escreve a História, ao dizer que é impossível pensar o presente sem os ditames do passado, e vice-versa, provoca no arqueólogo da memória, de quem escreve e de quem lê-assiste, uma espécie de vertigem, ao nos defrontarmos sobre o que éramos e em que nos transformamos.
Nas imagens trazidas por Kleber Mendonça, reconheço-me, ainda muito jovem, nas escadas, nas poltronas e nos bancos das salas de espera, nas luminárias, nos tapetes vermelhos, na cortina funky da arquiteta Janete Costa e nos vitrais de Marianne Peretti, no cine Veneza, no Art-Palácio e em todos os letreiros de filmes que aparecem na tela, Aeroporto, Dona Flor e seus dois Maridos, Hair, que revi tantas vezes. Daí extrapolo para outras salas de cinema, lindíssimas, ainda resistindo ao tempo, ou totalmente apagadas da paisagem urbana, em cidades que vivi ou conheci: o cine Moderno, de Pesqueira; o Excelso, de Salvador; o São Luiz, de Fortaleza; o Odeon, do Rio de Janeiro; o Marrocos, o Marabá, o Ipiranga, de São Paulo; o Ideal, o São Jorge, o Condes, o Éden, de Lisboa (vide Os cinemas de Lisboa), me dão a certeza de que Retratos Fantasmas comoverá públicos em cidades que construíram, vivenciaram e destruíram esses templos da arte, que todos nós amamos.
Com sua declaração de amor ao cinema, aos cineastas pernambucanos e ao Recife, Kleber Mendonça não me pareceu interessado em provocar estados melancólicos na audiência, nem se referir ao passado como o lugar indelével da felicidade, mas o de chamar à reflexão para o cotidiano das cidades contemporâneas, das velocidades estonteantes, que Paul Virilio, aqui mais uma vez, chamou de “poluição dromosférica.” Este é o mundo em que vivemos.
As cenas finais de Retratos Fantasmas revelam a substituição dos cinemas na paisagem urbana, seus letreiros e cartazes, com títulos de filmes e artistas, pela profusão dos neons das farmácias, nossos adoecimentos.
O humano se apresenta como metáfora de si mesmo, ou a ausência-presença dele nos ubers sem motoristas ao volante, já em curso mundo afora. Espécie de lusco-fusco da condição humana, que só o cinema, talvez, é capaz de espelhar, como faz Kleber Mendonça, impecavelmente, em Retratos Fantasmas.
Referências
ACCIAIUOLI, Margarida. Os cinemas de Lisboa: um fenômeno urbano do século XX. Lisboa: Bizâncio, 2013.
GASPAR, Lúcia. Cinemas antigos do Recife. http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&id=561
LINS, Letícia. Cinema Glória agora é Lin-Lin. https://oxerecife.com.br/cinema-gloria-agora-e-lin-lin/
PESQUEIRA histórica. A história do cinema em Pesqueira. https://www.pesqueirahistorica.com/2011/11/05/a-historia-do-cinema-em-pesqueira/
VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1982.
VIRILIO, Paul. O espaço crítico. Rio de Janeiro: editora 34, 1993.
Angelo Brás Fernandes Callou é Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova de Lisboa.
Li e vou ler de novo e de novo, de tanto que apreciei esse belo texto do Ângelo Brás sobre o recente filme do Kleber Mendonça. Não vi o filme, mas já gostei! Para além dos sentimentos e afetos que evoca na sua análise, Brás nos faz saber mais sobre muitos tesouros/objetos que faziam parte da beleza dos cinemas e os seus artistas criadores (das cortinas dos vitrais, dos lustres). Um certeiro resgate histórico e, mais ainda, a primorosa pesquisa de imagens com que nos brinda. O texto e as imagens atiçam deliciosas memórias de tempos idos.
Ah como eram boas as tardes de domingo, dia de ir aos cinemas espalhados ao redor da ponte Duarte Coelho! E de quebra tomar sorvete na Arcádia, vizinha do São Luis, cinema que era um luxo só. E do outro lado da ponte, o sorvete especial numa histórica sorveteria vizinha ao cinema Moderno que não lembro o nome, mas lembro do prazer de sorver o sorvete com um bisoito dos deuses! Era mesmo “o bom da vida”!!!
Parabéns, Brás!
Comentário à altura, Verônica!
Assistindo o filme ou lendo vocês, lembro o meu amor pelos cinemas do Rio: as matinés no São Luiz, o Metro Passeio, Odeon, Pathé, Roxy, o Kelly, ao lado da minha casa, o Paissandu, mais tarde, etc. etc. etc.