Minha mãe estudou pouco. Foi só até o ensino primário. Mas deu aula de vida ao longo dos seus 62 anos, com exemplo e sábias palavras. Escrevo e olho para uma foto onde ela está dançando forró com José Caminha, a quem ela chamava de Caminhas.

Não é por ser minha mãe, mas ali era uma inteligência privilegiada. O anzol enganchou no dedo do menino, a garota sufocou com a secreção no nariz, a senhora que incorporou uma entidade, o encanador que teve um ataque de epilepsia, o jantar da vizinha no réveillon, o caldo de carne no banho maria para recuperar um amigo doente, conselhos para casais, fazer parto, banho em recém-nascido, vestir defunto, cortar cabelo, costurar, confeitar bolo, dar injeção, fazer reza para tirar quebranto, dedetizar casa, cuidar de idosos. Chama Dona Severina. A lista não para aí.

As ferramentas que ela me deu – a oportunidade de estudar, brincar, imaginar, não fazer nada, tomar muito banho de mar, cantar, dançar, imitar os outros, brincar com sombras à luz de velas, ouvir nãos e sims – abriram meus receptores para o aprendizado.      Essa menina é tão intiligente.

Tenho facilidade e gosto de aprender. Entre outras coisas, aprendi a apurar informações e repassar. Quando criança, eu sabia tudo o que se passava na minha área. Dava três ou quatro versões para acidente de carro. Os mais velhos faziam teste comigo. Eu precisava dizer pelo menos uma informação verdadeira sobre qualquer pessoa que passasse na rua. O prêmio era sorvete. Contei isso a um amigo, me gabando de ter nascido para ser repórter, ele disse: você quer dizer fofoqueira?

Depurar a fofoca até virar notícia, eu aprendi na profissão de jornalista. Fui repórter de polícia. Era interessante receber aquela pedra bruta de manhã, lapidar ao longo do dia e ao final entregar o diamante para as pessoas lerem. Às vezes, o detalhe revelador fica escondido e a gente que vai contar a história tem de estar com os receptores abertos.

Entender a humanidade dentro das tragédias eu aprendi com o teatro. Respeitar as histórias pessoais eu aprendi com minha mãe, que me botava para escrever cartas. Eu ouvia as histórias, entendia o que os remetentes precisavam dizer e escrevia na primeira pessoa.

Por volta dos 13 anos de idade eu olhei para ela e vi uma senhora, então com 46 anos, olhos de um verde tão clarinho. Entrei naquele olhar, pesquisei as marcas do rosto, as expressões, os movimentos do corpo, a roupa, a voz. Olhei tanto, até desconhecer. Que pessoa diferente. Quem é? Uma mulher. Uma pessoa no mundo. Rosto forte. Entendi. Era minha mãe. De onde eu vim. Mãe de outros, tia de muitos, amiga de tantos. Uma mulher no mundo, vivendo.

Perguntei. Ela estava na costura, tirando o molde de uma calça. A senhora me vê como uma pessoa, sem ser sua filha? Olhou-me com estranhamento, meio impaciente. Essa menina é tão intiligente, mas tem umas conversa besta. Tá com conversa doida, menina! Pega ali a carretilha.

Ana Nogueira, Recife, 27.05.2023.

Foto em destaque: entre flores, em névoa orgânica, no Cerrado.

Foto1: entregando notícia. Final da década de 1990, início dos anos 2000. É preciso ir aonde o povo está.

Foto 2: até hoje atriz, jornalista, arte-educadora e produtora cultural. É indivíduo, não tem quem a reproduza.

Todas as imagens: divulgação.

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Ana Nogueira

Atriz, jornalista pela UNICAP, arte-educadora pela UFPE e produtora cultural.

16 Comentários

  • Que belíssimo texto amicarrr! Que menina, que mulher, que pessoa sábia vc. Se transformou… Me orgulho de ser sua amicarrr… Me emocionei bastante em lê. Passou um filme na minha cabeça. Quê sorte a minha ter feito parte dessa história e ter conhecido essa mulher linda de coração gigante que foi D. Severina ( Minha eterna Amicarrr…) ❤️ 👏👏👏

    • Meu amor, minha amicarrrr… suas palavras são como mel. eu também adoro ser tua amicarrr e de termos vivido tantas coisas juntas. Salve Bairro Novo-Olinda!

  • Pois é isso mesmo. Muitas são as inteligências. Aprendemos a valorizar mais essa chamada inteligência letrada. Mas há inteligência no olhar, no ouvir, no falar, no silenciar e, a de bem saber está no mundo, é uma das mais especiais. Viva, viva Ana!

  • Lindeza de experiência compartilhada. E a gente vai aprendendo junto.
    Conheci no Teatro, um parto, muitas alegrias e uma lágrima escorrendo no canto de um olho, fazendo lembrar entre nascimentos e mortes o encanto da vida.
    Vamos brincar, dançar, correr, nadar…
    Te amo Aninha ❤️

  • eita q saudades,qdo Niã(meu filho nasceu)eu disse logo:chama d severina,e toda noite ela dormia comigo pra dar agua de coco a o “mininu”pq ele nao mamava..ela cuidou dos meus seios pedrados e do meu bb🫶🏻❤️🌹

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