Eu devia ter uns 9 anos de idade, quando ouvi, com espanto, minha mãe comentar que as cabeças de Lampião e de Maria Bonita, entre outros líderes do cangaço, estavam expostas no Museu do Instituto de Medicina Legal Nina Rodrigues, em Salvador, sua terra natal. Lúgubre museu. Só por força da lei, em 1969 devolveu os restos mortais das vítimas da degola aos seus familiares.

Décadas depois, já como professor da universidade, fui ministrar um curso em Piranhas (AL). Aproveitei a oportunidade e me dirigi às escadarias da Prefeitura, onde aquelas cabeças foram dispostas, logo após serem ceifadas na Grota do Angico, cerco final a Lampião. Era minha reverência silenciosa aos que lutaram pela desigualdade social nos sertões nordestinos. Cheguei a iniciar a trilha até o Monumento Natural da Grota do Angico, mas, como estava sozinho e não sou do Sertão, me acovardei e bati em retirada, por receio de me perder no meio da caatinga. Arrependo-me até hoje.

Minha admiração pelos movimentos de resistência sertaneja, sejam eles classificados de banditismo ou messianismo, como analisam Eric Hobsbawm, em Bandidos, e Maria Isaura Pereira de Queiroz, em O Messianismo no Brasil e no mundo, levou-me, também, apesar do difícil acesso, ao Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, no cariri cearense. Ali aconteceu o massacre brutal ao movimento messiânico, instalado nesse arraial nos anos 1920/30, ao redor do beato José Lourenço. Os movimentos messiânicos no Nordeste sempre foram vítimas de extermínio pelo Estado brasileiro.

O filme Sertânia (2020, 96 min.), com roteiro e direção de Geraldo Sarno, abriu o baú dessas memórias, que aliadas a toda uma filmografia do cangaço, de Lima Barreto (O Cangaceiro, 1953) a Lírio Ferreira e Paulo Caldas (Baile Perfumado, 1997), passando pela fotografia e pela literatura, nos intima a reposicionar o olhar para o Sertão de agora, a partir do próprio cangaço. São nossos estoques estéticos, históricos e políticos sobre o semiárido, estereotipados ou não, que se mobilizam à interpretação do filme.

Na cena de abertura de Sertânia, a câmera do diretor de fotografia e câmera, Miguel Vassy, rasteja feito cobra, caatinga adentro, acompanhando o corpo igualmente rastejante do jagunço Antão (Vertin Moura) – Antão Gavião –, que, baleado e ofegante, resiste à morte. Em close up asfixiante, esta cena se repete várias vezes no filme e nos deixa tensos e sem ar, quais os dias que correm, enquanto o personagem faz uma incursão em sua história de vida, com idas e vindas incessantes de temporalidades.

Sertânia reafirma o que sabemos, ou estereotipamos, do Sertão: a contingência sertaneja, a aridez da caatinga, a seca, a fome, os saques pela fome, o coronelismo violento e corrupto, a exploração inumana, as promessas governamentais e a espera sem fim; a religiosidade, o messianismo, o massacre, o cangaço, a resistência, as migrações, o retorno ao Sertão: “E tudo que eu só queria era voltar para casa”, diz Antão Gavião na cena final do filme. Essas imagens vão sendo tecidas pelo cineasta, através de seu protagonista, naquele instante ínfimo entre a vida e a morte, como uma espécie de remembramento último, permeado pela busca do pai. 

À medida que as imagens do Sertão vão sendo apresentadas, de tão arraigadas no nosso imaginário, assumem, no filme, a meu ver, aquele tênue limite entre ficção e documentário, discutido por Fernão Pessoa Ramos, em Mas afinal… o que é
mesmo documentário?
Sertânia é, nesse sentido, um documentário das imagens que temos sobre o cangaço e o Sertão. É, ainda, penso eu, um documentário-homenagem ao cinema brasileiro sobre o cangaço. Não à toa, a certa altura do filme, sem que a cena seja interrompida, aparecem técnicos, câmeras e um assistente, suponho, fazendo sugestões. Alusão a Godard? Ao cinema mudo, pelas imagens reais de arquivo da urbe em processo de industrialização, em contraposição à nua e crua realidade sertaneja? Sertânia parece nos dizer, It’s all truth!

É nesse universo sertanejo que transita Antão Gavião, às portas do sumidouro da vida. Visita um purgatório à procura do pai. O pai primevo? O pai eterno? O pai ceifado na caatinga? O pai nosso de cada dia? Não sabemos. Como morto-vivo, paga dobrado em dinheiro para sair daquele lugar e atravessar o rio que o leva ao “mundo das sombras”. Lá encontra os beatos messiânicos e Delmiro Gouveia (assassinado em 1917, crime só esclarecido nos anos 1980), vidas interrompidas por sonharem um Sertão sem fome. 

Mas é a fotografia de Sertânia que edita, por assim dizer, nossas imagens do Sertão e as reconduz para a ordem do sublime, no sentido de que fala Kant, pois ela causa admiração e espanto. Ela afronta. Ela comove.

As lentes sensíveis de Vassy dão dignidade ao Sertão, a sua gente, a sua pobreza, a sua cultura, a sua paisagem. Sem pretensões didáticas, sem clichês e, talvez, por isto mesmo, vamos transformando nossos próprios estoques imagéticos estereotipados ou não da vida sertânia em um ato político: o de olhar o Sertão e dizer para nós mesmos em silêncio o que grita Antão Gavião diante de corpos famintos estendidos no meio da praça: “Não atire. O povo não tem culpa de passar fome. O povo é inocente.”

São várias as cenas de Sertânia que se assemelham a uma fotografia. Os atores e/ou figurantes se imobilizam, como se posassem para o fotógrafo, e a câmera em movimento lambe o congelamento das pessoas, naquele instante fugaz do ato fotográfico. É nessa fugacidade que percebemos o tratamento digno dado aos personagens: uma mão que delicadamente se move; um olhar profundo de um agricultor que nos interpela; um olhar solicitante e triste de uma criança no colo da mãe; uma mesa de jantar com o capitão Jesuíno e seus comparsas, dispostos frontalmente, à semelhança da Santa Ceia; o corpo morto do jagunço Neblina, ocupando todo o espaço da tela, a aludir Antônio Conselheiro exumado, antes da degola…

Sertânia estoura uma luz sobre o Sertão. De tão alumiado, desperta o que há de mais político e sublime em nós, a capacidade de se espantar diante da vida.

*O filme Sertânia está disponível no Claro Now e circulando em festivais de cinema. No dia 19
de dezembro será exibido no Cinesesc SP. Sertânia foi premiado como Filme do Ano, no 26º
Prêmio Guarani Cinema Brasileiro, além das premiações de Melhor Direção, Som e Direção de
Fotografia.

Angelo Brás Callou é professor titular do Departamento de Educação da UFRPE.

Fotos: divulgação.

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Edgard Homem

Por aqui transitam a arte e a cultura, o social – porque é imprescindível dar uma pinta de vez em quando, as viagens, a gastronomia e etc. e tal.

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