Lembro-me perfeitamente do dia em que José Celso Martinez Corrêa veio ao Recife, com a peça Galileu Galilei. Era 1971. Eu devia ter uns 18 anos.
Soube pela imprensa, à época, das encenações de trechos do espetáculo nas ruas do Recife, espécie de convite para as pessoas irem assistir à peça no teatro. Tal como faziam os atores circenses, pelas ruas das cidades do interior, na infância.
Atendi ao chamamento e fui ao Teatro de Santa Isabel, arriscar assistir à Galileu Galilei. Encontrei do lado de fora do teatro, lotado, um grande público sem ingresso. Eu era um deles. Pense numa frustração juvenil!
Morando em São Paulo, nos anos 1990, lia tudo que saía na imprensa sobre Zé Celso Martinez e assistia às entrevistas dele na TV. Mas sempre que me programava para ir às suas peças, no emblemático Teatro Oficina, desistia. Eram espetáculos longos, com quatro ou cinco horas de duração. Às vezes mais.
Com o falecimento trágico do diretor-ator, no último dia 6, lamentei não ter acompanhado, de perto, o trabalho dele no Teatro Oficina, como fiz com a obra de Antunes Filho, no Sesc Anchieta.
As Boas, baseada na peça As Criadas (1946), de Jean Genet (1910-1986), representada por Zé Celso, Marcelo Drummond e Raul Cortez, dando banho de interpretação, em 1991, no papel de Madame, dirigido pelo próprio Zé Celso, foi a única peça que assisti do Oficina. Espetáculo de grande impacto pessoal, ao revelar as relações perversas entre empregador e empregados (Madame e suas duas criadas, Claire e Solange, foco central da peça), a subserviência dos subalternos, as humilhações sofridas, os ressentimentos, a exploração do trabalho, a servidão, a luta de classe, no microcosmo da casa de Madame, onde as criadas se locomovem entre o ódio e a admiração à sua senhoria.
Genet escreveu essa peça na prisão, como a conclamar os desvalidos à rebelião contra seus algozes (Miranda, 2010). Por isto, talvez, tenha colocado a nu a condição social dos humilhados e ofendidos no centro do palco. Luta constante de Jean Genet e da sua própria dramaturgia.
Os insultos aos criados, verbalizados pela criada mais jovem da peça, Claire, ao se transmutar de Madame, nas ausências desta, numa espécie de catarse do que sofria, dá o tom da virulência do espetáculo. Diz Claire-Madame: “Detesto os criados. Detesto-lhes a espécie odiosa e vil. Os criados não pertencem à humanidade. Eles escorrem. São um miasma se arrastando por nossos quartos, por nossos corredores, penetrando em nós, se enfiando por nossa boca, nos corrompendo” (Genet, p. 27).
Estimulada por Solange, a criada mais velha, Claire continua com os impropérios: “Sei que são necessários, como os coveiros, os limpadores de latrina, os policiais. O que não impede toda essa bela gentalha de feder” (Genet, p. 28).
As Boas, de Zé Celso, vai na mesma direção do texto de As Criadas, mas faz uso do deboche, da ironia, da exposição do ridículo, para desbancar a tirania de Madame.
Passados todos esses anos, tenho ainda na memória As Boas, de Zé Celso. A impressão que fica é que o teatro marca o nosso corpo-memória, não apenas, ou necessariamente, pelo texto teatral, mas pelo trabalho de ator, na construção cênica e da relação palco-plateia. Desde os gregos, passando por Shakespeare, Jean Genet, Antunes Filho, entre tantos outros artistas do teatro, até José Celso Martinez Corrêa, o texto pode ser encenado ad infinitum, mas a interpretação dos atores é única, adaptando-se e se recriando à luz dos contextos socioculturais e políticos de cada época. É essa interpretação, penso eu, que se reproduz na nossa memória, sem a possibilidade de vê-la novamente, tal qual a vimos, em carne viva, naquele instante mágico na plateia.
Por isso, o teatro não morrerá nunca, apesar das ditaduras e dos enfrentamentos-fugas dos artistas nos porões, para sobreviver/resistir, qual uma Anne Frank, como assim o fez Jean Genet, encarcerado em prisões, e Zé Celso e sua trupe na ditadura militar. Hoje, o Teatro Oficina enfrenta Silvio Santos, na sua ganância capitalista, a querer sufocar o teatro-legado dionisíaco de José Celso Martinez Corrêa, com uma construção no terreno contíguo ao teatro, no bairro do Bexiga, em São Paulo.
Zé Celso viveu seu ofício como um Genet. Ao defender o teatro, sem concessões, sofreu reveses de todos os lados, mas deixou um legado em nome da arte, da cultura e da liberdade.
José Celso Martinez Corrêa, Presente!
Referências
MIRANDA, Carlos Eduardo Ortolan. O destino libertário de Jean Genet. Revista Cult, 2010. https://revistacult.uol.com.br/home/o-destino-libertario-de-jean-genet/
GENET, Jean. As criadas. Tradução de Pontes de Paula Lima. S.d. https://retrateinterior.files.wordpress.com/2014/07/as_criadas_-_jean_genet.pdf
Vídeo
Ensaio de As Boas, 1991. https://www.youtube.com/watch?v=72r3SOoBpLw
Agradecimento
Ao amigo Heraldo Guiaro, agrônomo e ator, pela troca de ideias sobre teatro na produção deste texto.
Foto primeira de José Celso Martinez Corrêa: Bob Sousa.
Foto de Angelo Brás Fernandes callou: divulgação.
Edgard,
Belo texto do Angelo sobre Zé Celso.
Também segui a carreira do grande diretor; concordo que
os espetáculos com 4 ou 5 horas realmente eram mais difíceis
para a plateia (fui em um, lembro q houve intervalo e pudemos
comer algo….)
Cacilda, vivida pela Bete Coelho foi um dos marcos do Oficina e
assisti.
Quando o Zé Celso e Renato Borghi completaram 80 anos, o Oficina
remontou O Rei da Vela e Roda Viva, clássicos da companhia.
Pude acompanhar estas remontagens e ter a noção do furor que
provocaram quando encenadas em plena ditadura militar!
Um abraço
Maurício