Logo nas primeiras páginas de Melhor não contar, livro lançado pela Todavia, a escritora, ensaísta e tradutora Tatiana Salem Levy relata um fato ocorrido com ela aos dez anos de idade que a marcou para sempre: numa manhã de verão, na piscina com sua mãe e o padrasto, ela é retratada num desenho por ele:
“Traços simples feitos com caneta azul contornam o corpo de uma menina sentada; uma menina sem rosto — sem olhos, sem nariz, sem boca — com um cabelo levemente encaracolado. Seus mamilos, apontando um para cada extremidade do papel, chamam a atenção. Há mais tinta neles, foram desenhados com força. Estão eretos, reparo.”
Uma cena aparentemente banal, mas que guarda em si algo mais profundo. Este homem mais velho, um cineasta consagrado, casado e que manteve uma relação estável com sua mãe por anos, em diversas outras vezes assediou a jovem Tatiana, que não conseguiu revelar este segredo para a mãe, que faleceu precocemente. Contrariando a opinião de amigos e parentes, Tatiana já adulta, mãe e escritora premiada, resolve revelar este segredo em forma literária, como um ato catártico.
Nascida em Portugal em 1979 — os pais se exilaram durante a ditadura militar —, Tatiana chega ao Brasil com meses de idade e constrói sua vida no Rio de Janeiro; graduada em Letras pela UFRJ e com mestrado e doutorado pela PUC/Rio, tem vários livros na carreira, incluindo A chave de casa, que recebeu o Prêmio São Paulo de Literatura/2008 como autora estreante. Hoje aos 46 anos vive entre o Rio e Lisboa e escreve críticas culturais para o jornal Valor Econômico.
Tatiana Salem Levy é autora também de dois livros infantis e Melhor não contar é seu oitavo romance. Sempre na primeira pessoa, a obra de 224 páginas é composta por pequenos capítulos, em que ela relata, de forma não cronológica, desde fatos de sua vida ao lado da mãe e a irmã caçula na infância e adolescência, até momentos atuais como mãe de duas crianças e de sua relação amorosa.
No entanto o que a motivou a escrever o livro foi justamente o silêncio imposto às mulheres que passam por traumas como assédio, estupro e violência doméstica. Ela mesma, vítima de assédio promovido pelo padrasto, não teve forças para revelar para a mãe. Mas, ao contrário da opinião de amigas, parentes e até ex-companheiros, resolve desvendar o segredo por meio de sua arte:
“Este livro é também sobre um segredo. Um segredo que não consegui — não pude, não quis — contar à minha mãe, tampouco aos meus diários.”
A escrita é outro tema muito refletido pela autora no livro. Ela lembra que as mulheres sempre foram muito incentivadas a escrever, com os diários sendo próximos da vida de meninas. Com ela e sua mãe não foi diferente, tanto que Tatiana ganhou da mãe os diários de sua adolescência. Na obra, a autora intercala seus relatos com as confissões da mãe, Helena Salem, retratadas em diários:
“05/01/1965
Querido diário,
Quando coisas desse cunho ocorrem comigo é que posso realmente medir o grau de minha insegurança e imaturidade. Hoje foi um dia triste, essencialmente vazio. Como é difícil a gente almejar a ser gente de verdade.”
A forte relação de Tatiana com a mãe é outro vetor do livro. Ela chega a questionar esta relação tão intrínseca:
“Quanto eu me pareço com ela?
Quanto eu sou ela?
Quanto ela sou eu?
Quanto resta de uma pessoa morta em nós?
Quanto de nós uma pessoa morta leva?
Aos vinte anos, quando perdi minha mãe, eu me tornei mulher uma segunda vez, passei a carregá-la no ventre.”
Por mais que autora desde o início tenha relatado o incômodo de sua relação com o padrasto, somente depois de 80 páginas que ela descreve as primeiras cenas do assédio. E mais outras tantas páginas para relatar o encontro que teve com ele, quando despejou sua ira e incompreensão:
“Você me fez muito mal.
Eu sei, ele disse.
E continuei, Por que você me fez aquilo? Como você pôde fazer aquilo? Comigo, com a minha mãe. Você sabe, mas você não sabe, eu disse, o mal que você me fez.”
Paralelamente ao mote central da trama (o trauma com o padrasto), a autora retrata a vida da mãe – jornalista de sucesso, primeira mulher correspondente de guerra – e sua dificuldade em lidar com a doença e morte precoce de Helena Salem. Como os relatos não são cronológicos e ela também conta sobre sua vida adulta (sua relação com o companheiro e a decisão pelo aborto, que em Portugal é legalizado e pode ser realizado em hospitais públicos), o leitor pode ficar confuso para montar o histórico familiar.
No entanto, o livro traz o depoimento corajoso de uma vítima de assédio, que provoca uma reflexão sobre o silêncio imposto às mulheres vítimas de traumas e violências domésticas.


Ficha técnica:
Título: Melhor não contar
Autor: Tatiana Salem Levy
Editora: Todavia, 224 pgs
Preço: R$69,90

Maurício Mellone é jornalista com mais de 40 anos de estrada; fez e faz a carreira, majoritariamente, a partir da imprensa de São Paulo – rádio, TV, impresso e assessoria de comunicação.
Foto de Tatiana Salem Levy em destaque: colhida do Jornal Rascunho.
Foto de Helena Salem: colhida do site Mulheres Jornalistas.
Foto da capa de Melhor não contar: divulgação.
Foto de Maurício Mellone: divulgação.
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