Jornalista, dramaturgo, roteirista e escritor premiado, João Silvério Trevisan, prestes a completar 80 anos (nasceu em junho de 1944), vem publicando textos memorialísticos, como Pai, Pai/2017 e agora Meu irmão, eu mesmo, lançado pela Editora Alfaguara, em que relata sua relação amorosa com seu irmão Cláudio José Trevisan, morto em 1996, aos 48 anos, de câncer linfático, ao mesmo tempo em que conta sua luta para sobreviver ao vírus HIV e a história trágica da comunidade LGBTQIA+ de enfrentar uma doença, a Aids – Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, que até então era fatal.
Com uma narrativa direta e extremamente íntima, Trevisan faz um painel político-cultural das décadas de 1970, 1980 e 1990, em paralelo com a sua história de vida.
Impossível não se emocionar: hoje com meus 64 anos, vivi de perto o horror de perder meu namorado e vários amigos nesta época, vitimados pela Aids. Por isto que, em muitos momentos, precisei parar a leitura para me recompor, tal o impacto causado pelo relato emocionado do autor.
Autor de vários romances e ensaios, Trevisan é muito conhecido por seu livro Devassos no Paraíso, obra essencial sobre a história da homossexualidade no Brasil. Meu irmão, eu mesmo é dividido em três partes, Adoecer de si, Adoecer do outro e Cicatrizes. Logo no início, João Silvério explica a forma como irá conduzir a trama:
“Como me aproximar de Cláudio José Trevisan? Faço a pergunta para lhe pedir licença, meu irmão, no início da empreitada hercúlea de adentrar sua história. Vou invocar sua presença direta quando achar necessário. Se a partir de agora eu lhe falo como a um personagem, é seu destino que me guiará. Para tanto, peço sua bênção, meu irmão.”
É com esta dificuldade (revisitar o passado, reavivar feridas) que o autor levou 30 anos para concluir o livro. Na primeira parte, Trevisan remonta a sua infância em Ribeirão Bonito, interior de São Paulo, sempre evocando o irmão, e os primeiros anos na capital: “Nossa aproximação começou na adolescência, não é mesmo?”. Estabelecido em São Paulo, Trevisan relata com detalhes sua trajetória profissional e as dificuldades extremas que encontrou para ser reconhecido como escritor, principalmente por retratar em sua obra o universo homoafetivo, além da severa censura da ditadura militar na época.
Paralelamente à luta para sobreviver (sempre contando com o amparo de Cláudio, que chegou a fazer um aporte financeiro para que pudesse se dedicar à literatura), Trevisan faz um painel do início da Aids no Brasil, com o estigma à comunidade LGBTQIA+, além de relatar como foi contaminado pelo HIV e a forma de enfrentar a moléstia após conversar com o médico Umberto Torloni:
“Tinha aprendido que, para sobreviver, precisava reagir. Saí dali (do encontro com o médico) tão assustado quanto convencido da necessidade urgente de organizar ações de enfrentamento do vírus”.
Recife abrigou o escritor
Como curiosidade aos recifenses, o autor conta do período em que morou no Recife, em 1982 quando escrevia o romance Em nome do desejo/Ed. Record e depois fala também do sucesso da adaptação do livro para o teatro, que fez em parceria com Antonio Cadengue, e do sucesso da peça, que permaneceu em cartaz no Recife por mais de um ano, em 1993.
A narrativa não segue um roteiro cronológico, o autor traça um painel da época intercalando fatos pessoais da infância, da fase adulta, sua relação com Cláudio e o outro irmão Toninho, sua produção literária e fatos relacionados ao horror da Aids. Chamou minha atenção a forma como Trevisan cita o espetáculo teatral O livro de Jó, de Luís Alberto de Abreu, encenado pelo grupo Teatro da Vertigem, dirigido por Antônio Araújo e protagonizado por Matheus Nachtergaele.
“A cena final da peça configura um desses momentos epifânicos que suplantam a percepção do mero espaço cênico. Nunca conseguiria expressar o milagre daquela representação poética incendiária”.
Em diversos momentos do livro, Trevisan deixa fluir seu lado de ensaísta e discorre sobre temas filosóficos e existenciais, como sua tese sobre vida e morte: “… estamos todos infectados pelo vírus da vida, da qual a morte é a outra face natural. Ou seja, só diante da morte a vida refulge com toda sua luz.”
A segunda parte do livro é praticamente dedicada ao aparecimento do câncer linfático em Cláudio e o sofrido processo do tratamento dele. O autor, no Natal de 1994 fez um poema e o recitou, provocando as mais variadas reações da família. Mas é uma visão peculiar sobre o câncer:
“É Natal.
O mistério está mais perto de nós.
O céu nos deu um câncer
como uma estrela nova
a brilhar.
E nunca fomos tão amados,
ó dor.”
Como o próprio nome dado à terceira parte, Cicatrizes, Trevisan recolhe cartas, trechos de fax, notas de diários, memórias que traduzem seu luto e como reuniu forças para enfrentar a perda do irmão. “Estou me esforçando, com certo êxito, para aceitar a morte do meu irmão. Mas há momentos em que me revolto.” Os sonhos também são retratados pelo autor, assim como sua relação com a cunhada Ziza, esposa de Cláudio, e com o sobrinho Victor. Os relatos são datados, desde 1994, ano da morte do irmão, até 2022. Fecho esta resenha — confesso a dificuldade de redigi-la — com as filosóficas palavras de João Silvério Trevisan.
“Depois de reler tudo o que escrevi, nestes tinta anos às voltas com o livro, não consigo refrear a dor revisitada. Honestamente, prefiro escrever para apontar as cicatrizes que refugamos ao nosso redor. Você que me lê também integra a confraria da dor. Desde seu alvorecer, a humanidade se confraterniza na dor. Não apenas porque não temos escolha. Mas porque é impossível sobreviver sem ouvir a voz da nossa dor.”
Ficha técnica:
Título: Meu irmão, eu mesmo
Autor: João Silvério Trevisan
Editora: Alfaguara, 252 pgs
Preço: R$64,90
PS: Maurício Mellone é jornalista com mais de 40 anos de estrada, fez carreira na imprensa de São Paulo: rádio, TV, impresso e assessoria de imprensa.
Fotos em destaque, João Silvério Trevisan: colhida do Facebook.
Demais registros: divulgação.
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