Troquei Miró pelas ramblas de Barcelona. Era a primeira vez que estava na terra do gravurista, ceramista, escultor e pintor, das vanguardas europeias da arte abstrata. Optei pela arquitetura de Antoni Gaudí, pelos portões bordados com ferro, das residências e prédios públicos, e pelos bares e cafés lotados de gente do mundo inteiro, à Fundació Joan Miró e sua arte. 

Miró nunca esteve no Brasil, apesar de ter vivido 90 anos (1893-1983). Mas sua pintura veio ao meu-nosso encontro, ao lado do amigo americano, o artista plástico Alexander Calder (1898-1976), no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo.

Joan Miró. Godalla, 1973. Litografia sobre papel. Fonte: exposição Calder+Miró, Instituto Tomie Ohtake, 2024.

Com curadoria de Max Perlingeiro, a partir de pesquisas realizadas por Paulo Venancio Filho, Roberta Saraiva e Valéria Lamego, a exposição Calder+Miró apresenta 150 obras, entre pinturas, esculturas, móbiles, desenhos, joias e fotografias. 

Ao contrário de Miró, Calder esteve no Brasil pelo menos em três oportunidades artísticas, em 1948, 1959 e 1960, segundo os organizadores da exposição. Curadorias foram realizadas com suas obras, ao longo dos anos, em São Paulo e no Rio de Janeiro. A última em São Paulo foi em 2006, na Pinacoteca do Estado. 

Estranhamente, nunca ouvira falar em Calder, um dos precursores da escultura cinética no mundo, que influenciou a arte e a arquitetura modernas no Brasil. Assim, do jeitinho que gosto, vou vivendo e aprendendo!

Alexander Calder. Sem título, 1973. Folha de metal, arame e tinta. Fonte: exposição Calder+Miró, Instituto Tomie Ohtake, 2024.

Entro pelas salas de Calder+Miró, e, em alguns momentos, chego a me perguntar quem é quem – Miró ou Calder – em cada obra observada, devido à proximidade artística entre eles. Cores primárias, contornos pretos nas formas abstratas, singelezas, poesias recitadas, por meio de uma infinidade de signos criativos, cósmicos, intuitivos, aparentemente nulos, numa liberdade artística invejável, estão presentes no espaço das telas desses dois grandes amigos-siameses na arte abstrata.

As primeiras impressões diante das esculturas de Calder são as lembranças dos brinquedos construídos com arame flexível, que se equilibram nas pontas dos dedos, quando criança. Outras nos remetem aos “bichos” de Lygia Clark, esculturas que assumem formas distintas ao serem manipuladas. Do meu catálogo da memória ainda vêm as esculturas em placas de ferro de Amilcar de Castro e os quadros da extraordinária Mira Schendel. Tomie Ohtake também ocupa a cena das associações, pela lembrança de algumas esculturas fincadas nas ruas de São Paulo e pelas suas telas, particularmente as que contêm signos curvados, redondos e ovais à la Miró.

Os organizadores da exposição estão atentos a essa influência dos amigos-siameses na arte moderna brasileira. Embora não façam alusão a todos os artistas há pouco mencionados (salvo engano), expõem obras deles, por assim dizer, ao lado de Alexander Calder e Joan Miró, para assinalar convergências artísticas em solo brasileiro. 

Foi com surpresa que me defrontei num dos expositores da Calder+Miró com um livro do poeta e diplomata pernambucano João Cabral de Melo Neto, que desconhecia – Joan Miró. Esta obra (já em minhas mãos) foi reeditada pela Verso Brasil, em 2018, depois de 68 anos de sua primeira edição.

Folha de rosto do livro Joan Miró, de João Cabral de Melo Neto (editora Verso Brasil, 2018). No primeiro plano da fotografia, Miró, ao fundo, o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto.

Saio da Calder-Miró com a velha certeza de que a arte não tem como função reafirmar conceitos e valores introjetados sobre o belo, o feito, o real, o compreensível – signos já manjados. Cabe à arte, penso cá comigo, a função de detonar certezas estéticas, conceitos arraigados, para abrir caminhos a novas compreensões da vida humana e da natureza. O acesso à arte, portanto, rejuvenesce, se não a pele, com certo acerto, o conhecimento.

São Paulo, julho de 2024.

Expediente

Exposição Calder+Miró, Alexander Calder e Joan Miró

Até 15 de setembro de 2024

Terça-feira a domingo, das 11h às 19h – Entrada Gratuita

Instituto Tomie Ohtake – Rua Coropé, 88, Pinheiros, São Paulo (SP)

Angelo Brás Fernandes Callou

Ele é Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova Lisboa.

Foto de abertura do texto, Joan Miró. Le Sourire nacré devant l’azur, 1972. Óleo sobre tela, 130cm x 195cm: Angelo Brás Fernandes Callou.

As demais imagens são reproduções, também feitas pelo autor do texto, a partir do catálogo da exposição e do supracitado livro de João Cabral de Melo Neto.

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Angelo Brás

Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova Lisboa.

1 Comentário

  • Atualmente, estou a caminho da exposição e ao pesquisar sobre o tema, encontrei este texto na internet. Fiquei intrigada e encantada com a forma como foi escrito, com as descrições e comparações entre os artistas. Pessoalmente, ainda não conheço o trabalho de Calder, mas após sua narrativa, estou ansiosa para me surpreender com a arte, assim como me cativaram suas palavras. Que blog fantástico! Voltarei com certeza para acompanhar mais.

    Andressa

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