(Dedico este texto à atriz Maria Ribeiro)

Em tempos tórridos de modificação climática e de reestruturação política, social, econômica e cultural no Brasil, assistir ao recente documentário Nelson Pereira dos Santos, uma vida de cinema (2023) é firmar a certeza de que o nosso país ainda tem jeito. 

A grandeza da arte e dos artistas brasileiros, abordada nesse filme pelas diretoras Aída Marques e Ivelise Ferreira, nos arrebata pelo que há de mais sagrado em nós, a nossa humanidade, a nossa capacidade de nos emocionar, de refletir sobre a realidade social e nos indignar diante dela. Nelson Pereira dos Santos abocanha esses sentidos humanos de maneira delicada e nevrálgica, na polifonia do Rio de Janeiro, na aridez da caatinga e na isolada Paraty, espécie de exílio da arte e da cultura nos anos de chumbo. As diretoras sabem disso, e nos levam pelas mãos seguras desses sentimentos.

No início dos anos 1990, morando em São Paulo, comecei a me interessar mais de perto pelo cinema de Nelson Pereira dos Santos, para além dos que havia assistido no período da ditadura militar – Como era gostoso o meu francês (1971), Tenda dos milagres (1977) e Memórias do cárcere (1984).

A primeira mulher com quem Nelson Pereira foi casado, por quase cinquenta anos – Laurita Andrade Sant’Anna dos Santos –, era professora colega-amiga de Manoel Vital Fernandes, meu primo, na Universidade Federal Fluminense. Quando fazíamos pós-graduação em São Paulo, Laurita sempre que visitava a cidade vinha ao nosso apartamento alugado no bairro de Campos Elíseos. 

Foi quando descobri que pouco conhecia do cinema de Nelson Pereira dos Santos. Decido, então, entrar nesse universo tórrido nelsoniano, uma experiência sem prazo de validade, reafirmada em Uma vida de cinema.

O que mais impressiona no documentário de Aída Marques e Ivelise Ferreira é, de um lado, a capacidade de selecionar as mais belas cenas da vasta obra do diretor, para entremear entrevistas de arquivo, concedidas por ele em diferentes fases da sua vida; de outro, como resultado dessas edições, assistimos a um documentário que não se restringe a um registro-histórico-homenagem de um artista brasileiro da envergadura de Nelson Pereira dos Santos.

Sem didatismos, sem sequer mesmo percebermos a presença das diretoras no documentário e/ou na intencionalidade dos excertos realizados, vamos sendo conduzidos, ou melhor, arrebatados, à grandeza da obra de Nelson Pereira dos Santos, dos atores que atuam nos filmes e da própria arte brasileira, que o artista expôs ao mundo. É quando nos damos conta do quão atual são alguns temas da realidade social e política brasileira tratados em Uma vida de cinema.

Maria Ribeiro no filme Vidas Secas (1963). A atriz completou 100 anos, em março último. Mora na Suíça. Foto: divulgação.

É nesse sentido, que o documentário vai além, ouso dizer, de uma homenagem a Nelson Pereira dos Santos. Não à toa, as imagens do jovem diretor (faria sucesso como galã diante das câmeras – ele protagonizou como diretor-ator em Mandacaru Vermelho, 1961) são superpostas a outras já na meia-idade e na velhice, num vaivém constante. A nos dizer que o documentário não está preocupado em seguir uma cronologia à risca, mas nos revelar o quanto o passado nos constitui no presente. O Brasil de agora não se desgruda do cinema de Nelson Pereira dos Santos, nas temáticas da miséria urbana e rural, das questões indígenas, do preconceito racial e contra as religiões afro-brasileiras, da política e do poder.

O filme se inicia com enxertos de Rio, 40 graus (1955), primeiro longa-metragem de Nelson Pereira dos Santos, uma das obras-primas do diretor. À primeira vista, parece uma abordagem alongada, num formato de documentário já conhecido, mesclado por entrevistas de arquivo. Aos poucos, o documentário vai nos surpreendendo com as interpretações primorosas de atores, entre outros, Grande Otelo, em Rio, zona norte (1957), Carlos Vereza, em Memórias do cárcere, já referenciado, Jece Valadão, em Boca de ouro (1963), Jofre Soares, em O amuleto de ogum (1974) e a mais emblemática de todas, Maria Ribeiro, em Vidas Secas (1963), prêmio OCIC e Prêmio de Melhor Filme de Arte e Ensaio no Festival de Cannes, em 1964. Este é o filme que mais aprecio na obra de Nelson Pereira dos Santos, fotograficamente bem explorado no documentário.

As cenas finais de Nelson Pereira dos Santos, uma vida de cinema, arrancam emoções similares àquelas de quem assistiu ao Cinema Paradiso (1990), de Giuseppe Tornatore. 

O documentário de Aída Marques e Ivelise Ferreira nos dá a certeza de que Nelson Pereira dos Santos se tornaria imortal, independentemente do fardão da Academia Brasileira de Letras. O artista parece contrariar o bordão de que o hábito faz o monge. Será arte?

Serviço:

O filme Nelson Pereira dos Santos, uma vida de cinema (2023, 104´), está em cartaz no cinema da Fundaj/Museu, nos dias 5 e 6 de novembro de 2023. Vide os horários no site: https://cinemadafundacao.com.br/2022/05/programacao/

Alguns filmes de Nelson Pereira dos Santos disponíveis gratuitamente:

Vidas Secas

Rio, 40 graus

O amuleto de ogum

 Mandacaru vermelho

A missa do galo

Jubiabá

Rio, zona norte

Tenda dos Milgares

PS: Angelo Brás Fernandes Callou é Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova de Lisboa.

Foto do cartaz do filme e do autor do texto: divulgação

Angelo BrásAuthor posts

Angelo Brás

Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova Lisboa.

Sem comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

dois + treze =