No início dos anos 2000, a Folha de S.Paulo publicou uma longa matéria sobre Nelson Freire (1944-2021). O mote era a apresentação do pianista no Theatro Municipal de São Paulo, num concerto para piano e orquestra.

Quando li que o músico era considerado um dos mais importantes intérpretes de Frédéric Chopin no mundo, pela crítica especializada, pelos seus pares e pelo público europeu (tradicionalmente admirador da música clássica), não hesitei: comprei bilhete no melhor lugar da plateia. Como esquecer o instante em que Nelson Freire executa o Prelúdio No. 4, Opus 28, de Chopin? 

Depois desse concerto, é Nelson Freire quem escolho, quando quero ouvir música clássica. Em 2007, voltei a assisti-lo na Sala São Paulo. Foi a última vez.

Na esteira do prestígio internacional do pianista, João Moreira Salles lança, em 2003, o documentário Nelson Freire. De pronto, fui assistir ao filme. Ademais, o cinema dos irmãos Salles não é arte para se assistir depois.

O que mais chama atenção no trabalho de João Moreira Salles é a delicadeza com que sua câmera se aproxima dos “objetos”. É como se pousasse a mão num cão de estimação que dorme, mas este não se move ao acordar, devido à sutileza da abordagem. Essa é a imagem guardada do filme Nelson Freire, que reaparece em outras obras do diretor, como Santiago (2006) e No Intenso Agora (2017).

Em Nelson Freire, Salles filma o instante dos acontecimentos: o pianista nos concertos, nas coxias, entre os aplausos da plateia e o retorno ao palco; nas conversas informais com os amigos; nos estudos de piano; nos ensaios; na sua espera paciente para dar uma entrevista, antes do som da claquete, no set de gravação.

Ao final do documentário, a impressão que fica é a de que o cineasta buscou filmar Nelson Freire, por gostar de ver as pessoas sendo, como diria Clarice Lispector. Observamos um pianista gentil, tolerante, com certa timidez melancólica, com um jeito próprio e simples de tratar as pessoas, sem arroubos de estrelismo, diante dos elogios e da sua importância como músico internacionalmente reconhecido. São singelezas que saltam das cenas, qual um gatinho que cruza do nada o nosso caminho, nos olha e segue seu destino, deixando-nos inexplicavelmente felizes pelo encontro inesperado. A delicadeza do cinema de João Moreira Salles encontra sua cara-metade em Nelson Freire. Essa convergência parece reafirmar a frase de Oscar Wilde, de que “A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida…”

Nelson Freire. Fonte: Jornal DCO (2021).

A primeira biografia do pianista, Nelson Freire: o segredo do piano (DBA, 2024, 230 p.), do jornalista francês Olivier Bellamy, foi traduzida recentemente no Brasil. A obra provocou protestos de amigos e familiares do músico.

A homossexualidade de Freire, refletida nos companheiros que escolheu para viver na sua casa, ou apenas namorou ou se apaixonou ao longo da vida, abordada de maneira secundária na obra, e a insinuação de que o músico suicidou-se – a família nega – foram vistas como passagens desabonadoras da trajetória artística do biografado. Bobagem! 

Pierre Bourdieu já havia nos alertado, em Esboço de Auto-Análise, que o gênero biográfico ou autobiográfico “é ao mesmo tempo, convencional e ilusório.” (p. 37). As orientações sexuais, os dramas humanos, a genialidade, as tragédias, as doenças, a alegria, as paixões, o sucesso, a depressão, o amor e o desamor são constituintes da condição humana. Sejam literários ou não, Nelson Freire vivenciou todos eles.

Mineiro de Boa Esperança, Nelson Freire nasceu praticamente morto. Atravessou a infância com a saúde frágil, à base de cuidados permanentes da família. Com 3 anos, começou a tocar piano de ouvido, e logo revelou sua genialidade musical. Aos 5 anos e meio, os pais foram morar com ele no Rio de Janeiro, para acompanhar seus estudos de piano. Aos 14, obteve bolsa de formação do Governo brasileiro para jovens virtuoses e foi morar sem a família em Viena. Aos 19, já era considerado um dos maiores pianistas do mundo. Sobreviveu, aos 22 anos, ao desastre em que seus pais morreram, numa viagem de ônibus do Rio de Janeiro a Belo Horizonte.

Para além dos dramas humanos, Olivier Bellamy traz para o leitor de Nelson Freire: o segredo do piano, a genialidade do músico e sua expansão no tempo, sobretudo na Europa, onde construiu sua carreira. Os memoráveis concertos de piano e orquestra, que Bellamy recupera na trajetória invejável do artista, são descritos, realçando a maneira gentil e amorosa do músico com a plateia e com seus contemporâneos de ofício, tal como percebida por João Moreira Salles. “… é o homem mais simples do mundo”, diz o agente de Nelson Freire, ao conhecê-lo.

O leitor da biografia toma contato com as obras executadas pelo músico em Piano Solo, Quatro Mãos, Dois Pianos, Música de Câmara e Piano e Orquestra, com menções a algumas obras da preferência de Nelson Freire. É um privilégio saber disso no livro e ouvi-las ao sabor da leitura. Entre elas, o Concerto No. 2, de Brahms, e o Concerto No. 2, de Chopin. O Estudo Opus 10, No. 2 in A Minor, de Chopin, é citado no livro como uma obra que até o diabo foge dela. Nelson Freire nunca a executou no palco. Apenas gravou. É de tirar o fôlego!


Praia do Pina, Recife, 1 de abril de 2024.

Referências 

Frédéric Chopin, Estudos, Opus 28: no. 4 in E minor, por Nelson Freire. https://youtu.be/sfkkmnZpcF4?si=CG6Vn7hhAEmU3lIX

Frédéric Chopin, Concerto No. 2, in F Minor, Opus 21:2, por Nelson Freire.
https://open.spotify.com/track/4i4toWQpIbqoBpa7suLApd?si=J3Nj0dIsQG-etFNF-VJd3Q&context=spotify%3Asearch%3Aconfero%2Bn%2B2%2Bchopin

Frédéric Chopin, Estudos, Opus n.10: n.2, por Nelson Freire
https://open.spotify.com/track/1aCmJqamtm8sAaOvQ29l93?si=EwNO5jFGRGu31_XmKap2bw&context=spotify%3Asearch%3Achopin%2Bestudo%2Bpo%2B10%2Bn.%2B2%2B%2Bnelson%2Bfreire

Johannes Brahms, Conserto No. 2, in B-Flat Major, Opus 83, por Nelson Freire. https://open.spotify.com/track/17L8jD7jtYGCn3v6b1tlxT?si=uBcF4s7nR52du3TKs4BS3w&context=spotify%3Asearch%3Aconcerto%2Bn2%2Bem%2Bsi%2Bbemol%2Bbrahms%2Bbelaon%2Bfreire

Ele, o autor do texto.

Angelo Brás Fernandes Callou é Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova de Lisboa.

Imagem em destaque, A partir de uma janela de Matisse: acrílica sobre papel de Angelo Brás Fernandes Callou.

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Angelo Brás

Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova Lisboa.

3 Comentários

  • Parabéns, Brás! Ninguém melhor do que você para trazer à cena, com maestria e erudição , personagens desconhecidos do grande público, destacando a sua obra, o seu talento e antes de tudo, preservando uma memória.

  • Que lindo seu texto, Ângelo Brás!!!!
    Admiro demais os dois artistas que homenageia – Nelson e João. Nelson, gênio. Inesquecível sua apresentação na Matriz de Tiradentes e ter sentido sua doce
    e romântica simplicidade ao piano e, depois, conversando.
    João, meu documentarista preferido.
    Temos, eu e você ,uma amiga em comum: a mineira 🌹 Rosa.
    Um beijo, Stella Maris

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