Assim como em seu livro de contos Perifobia, editado em 2018 pela Patuá, novamente a escritora paulista Lilia Guerra com o romance O céu para os bastardos, lançado pela editora Todavia no segundo semestre do ano passado, foca sua história na trajetória de vida das pessoas que vivem nas favelas/comunidades das periferias dos grandes centros urbanos.

Na contracapa do livro, José Falero nos lembra dos ensinamentos da escritora Conceição Evaristo, que assegura que se “existe uma literatura universal, essa literatura só pode ser concebida e ambientada na base da pirâmide social, onde estão as mulheres negras e as personagens e tramas de Lilia Guerra”.

A escritora parte de um velório, “do seu Genuíno Amolador”, para fazer um painel, uma radiografia da vida das pessoas que vivem no Fim-do-Mundo, uma comunidade muito distante do centro de uma metrópole dos dias atuais.

Se o escritor carioca Geovani Martins retrata a realidade das favelas do Rio de Janeiro, Lilia Guerra traz este mesmo universo para o centro de sua obra, com sua visão de mulher, negra e periférica. A escritora vive na Cidade Tiradentes, bairro da Zona Leste da capital paulista, trabalha na área de saúde e seu amor pela literatura vem desde a infância. Além de Perifobia, é autora do romance Amor avenida e dos contos reunidos em Rua do larguinho.

Desde as primeiras páginas de O céu para os bastardos, o leitor fica sabendo que a narradora é a autora da história que vai se desenrolar. Sá Narinha, conhece bem todas as pessoas da sua comunidade, assim como os problemas que elas enfrentam diariamente, como ônibus lotados, falta de infraestrutura (saúde, saneamento, educação) e problemas com drogas e violência.

“… episódios são reprisados nas paredes de minha memória. Segredos de calçada. Casos que ouvi ou acompanhei. Registros que detalhei em meu caderno de capa vermelha. Capítulos que compõem o livro de histórias que se desenrolam em Fim-do-Mundo.”

O inusitado do livro é que tudo parte do velório do velho amolador do bairro. Narinha, sentada no salão onde está sendo velado o seu Genuíno, vê as pessoas chegarem e sua memória fica solta. As tramas e personagens vão sendo apresentados, sem um registro cronológico rígido. Nomes e histórias às vezes podem confundir o leitor, mas aos poucos percebe-se a criação de um grande painel daquela comunidade.

Se a vida e o destino das vizinhas e dos demais moradores são logo apresentados, a própria trajetória de Narinha é revelada de forma paulatina. Tudo porque ela tem dificuldade de contar um fato que a deixa triste. Ela foi operária de uma fábrica e hoje é empregada doméstica de Dona Gerda, uma senhora branca preconceituosa, que tem um filho que adora Narinha.

A vida de Julio Cesar, filho e Narinha, é que vai sendo revelada aos poucos. Primeiro que ela resolveu assumir a gravidez sozinha, depois que o pai da criança sugeriu que ela abortasse. O garoto foi criado por ela e pela irmã Valdumira. Adulto, o rapaz casa-se e, por ciúme exagerado, agride violentamente a esposa e é preso. Todo o destino de Narinha e sua família é descrito de forma intercalada com o cotidiano de Fim-do-Mundo.

Há uma passagem contundente na obra, exatamente quando Betinho, filho de Gerda, quer saber de Narinha sobre a escravidão. Ela antes de falar o que acha, quer saber a opinião dele, que insiste para saber a visão de Narinha:

“O seu bisavô branco e pobre, nunca foi torturado, amarrado num tronco. Surrado. Um homem branco podia sim ser mal remunerado. Mas nunca escravizado. Uma mulher branca podia ser muito pobre. Nem por isto teria os filhos arrancados dos seus braços diretamente para as mãos dos compradores. Ainda hoje, Betinho, se um negro, no auge do desespero, furta um pão, a notícia se espalha: ‘Aquele negro é um ladrão’. Se é um branco que rouba, o comentário se modifica: ‘Aquele homem cometeu um delito’. Sua mãe não sabe o que está falando. É o que eu acho”.

Para encerrar, peço ajuda de uma amiga, Nanete Neves, jornalista e escritora que me apresentou Lilia e a definiu tão bem em seu blog:

“Lilia Guerra poderia ser chamada de especialista das quebradas, e muitas vezes é apresentada assim. Mas essa autora é mais que isso. É como uma soprano, que modula na voz o pranto, a raiva, a revolta sem esquecer a doçura, o bom humor e a esperança.”

Ficha técnica:

Título: O céu para os bastardos

Autor: Lilia Guerra

Editora: Todavia, 176 pgs

Preço: R$54,90

Leandro Junior assina a pintura-agora-capa de O céu para os bastardos. Estreia da autora na Todavia.
O autor da resenha.

PS: Maurício Mellone é jornalista com mais de 40 anos de estrada, fez carreira na imprensa de São Paulo: rádio, TV, impresso e assessoria de imprensa.

Foto em destaque da escritora que também é auxiliar de enfermagem no sistema público de saúde: divulgação.

Foto da capa do livro: capturada do site da Amazon.

Foto Maurício Mellone: divulgação.

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Edgard Homem

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