Os paletós e calças brancos de linho engomados chegavam dependurados em cabides, pelas lavadeiras. Dois ou três deles (acho que tinha um jaquetão escuro também), meia dúzia de sapatos, algumas gravatas, dois cachecóis de lã e um chapéu de feltro escuro compunham, quando eu criança, o guarda-roupa do meu pai. Um velho promotor público do interior, que dizia não ter conhecido nenhum juiz corrupto. Tadinho!

Como era um homem de 1,60m ou menos de altura, macérrimo, braços tortos, de tanto quebrá-los na infância, o contraste com seus olhos azuis, com sua conversação frouxa, recheada da mais fina ironia, envergando um linho, resultava numa figura humana simples e elegante. Ao entrar em qualquer espaço fechado, privado ou público, retirava o chapéu da cabeça. Acho que aprendeu o gesto com os agricultores, de onde se originava. A noção da existência do outro, pelo respeito, pela reverência, pela educação, parecia mais presente na vida das pessoas, àquela época.

Lembrei-me desses cenários tão distantes, ao olhar na TV a figura do humorista presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky. 

Vestido num moletom de quem vai a uma academia de ginástica, Zelensky encontra-se oficialmente com autoridades do mundo inteiro. O moletom reforça, a meus olhos, seu ar arrogante e desqualificador do outro. Se as questões de guerra são concernentes à diplomacia, as roupas formais-tradicionais dos encontros diplomáticos reafirmam a seriedade que o contexto exige, diante do mundo.

Zelensky, como artista, quer fazer diferente. Apresenta-se como um presidente pop, no seu modelito mundialmente conhecido que, pela simplicidade da proposta, provocaria riso em Carmen Miranda. 

Há quem leia a “indumentária” de Zelensky como um ato político, pelas recorrentes quebras de protocolo. Mas será que este “ato político” ajuda na solução da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, desejada por todos nós? E em que exatamente?

Ato político, penso eu, foi Leila Diniz expor, de biquíni, sua barriga de grávida na praia de Ipanema, no início dos anos 1970, no contexto da ditadura militar. Ato político é um professor tomar ao colo, espontaneamente, uma criança, enquanto a mãe-aluna realiza os exames acadêmicos, quando o bolsonarismo esculachava a atividade docente. Ato político é Jojo Todynho aparecer na capa da Vogue, em meio ao racismo e à gordofobia.

Zelensky quer passar a ideia, dizem, da representação de um homem simples e angariar com isto simpatizantes a favor da Ucrânia, em meio à guerra. E eu que considerava como simplicidade aquela aprendida em casa ao observar apenas três ternos e o ato de tirar o chapéu na presença do outro.

Ao ver Zelensky de moletom, pronto para “malhar”, arrumadinho, penteado e limpo, soa e sua como estratégia para inglês ver, numa sala repleta de chefes de Estado. Especialmente quando se sabe que “Metade do mundo, se não mais, não votou nos EUA para impor sanções à Rússia.” Assim se expressou Tariq Ali, um dos editores da conceituada revista New Left Review, na entrevista É perfeitamente razoável não ser a favor de Putin ou Zelensky. E mais, diz Ali em relação ao presidente ucraniano: “Ele não é um cara muito esperto, apenas faz o que mandam fazer.”

Algumas vezes, penso que já vi de tudo em matéria de gestos e vestuário, digamos, “inadequados”, quando a presença do outro e do contexto parece negada. Aluna defendendo dissertação de mestrado, mexendo com as mãos os dedos dos pés, enquanto é arguida; outros de boné na sessão de defesa de tese; professores ministrando aula na universidade, de chapéu; outros, ainda, de calça pantacourt (até o meio da canela), com sandália havaiana; professor apresentando memorial para professor titular, com chinelo de couro e camiseta Hering, são alguns exemplos, entre tantos outros que não posso citar, de tão constrangedores, no cenário atual do eu posso, eu quero, eu faço. 

Aprendi com uma orientanda de mestrado, que pesquisou sobre criação e produção da moda-vestuário, repito aqui o que escrevi em um outro lugar, que é preciso considerar a estrutura do corpo, a altura, o peso, a idade, o contexto social, o clima, o tipo de tecido e sua padronagem, o conforto da roupa sobre o corpo, as alternativas possíveis de uso e suas combinações, os adereços, e, sobretudo, a livre escolha dos usuários que podem, inclusive, criar, recriar, inovar, customizar, diante da cartela quase infinita de possibilidades democráticas de se vestir no ambiente social. Continua sendo vestuário. Mas, fazendo cultura.

Vestir-se, se estamos falando daqueles que possuem ao menos algumas mudas para trocar/combinar/customizar, portanto, é muito mais do que cobrir o corpo, abrigar o corpo, expor o corpo. A roupa pode, inclusive, revelar a dignidade que damos a ele e, por consequência, a outros corpos vestidos, com os quais nos comunicamos.

O moletom de Volodymyr Zelensky é um abrigo fake em tempo de guerra.

Referências

“É perfeitamente razoável não ser a favor de Putin ou Zelensky”. Entrevista com Tariq Ali – Instituto Humanitas Unisinos – IHU, março de 2023. https://www.ihu.unisinos.br/categorias/626505-e-perfeitamente-razoavel-nao-ser-a-favor-de-putin-ou-zelensky-entrevista-com-tariq-ali

Angelo Brás Fernandes Callou é Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova Lisboa / Foto: divulgação.

Foto Volodymyr Zelensky: Genya Savilov / AFP.

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Angelo Brás

Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova Lisboa.

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