Nascida em Arcoverde, a escritora Micheliny Verunschk venceu o prêmio Jabuti de romance literário, fábula baseada em fato real de rapto de duas crianças indígenas por cientistas alemães em 1820
Historiadora e escritora premiada – venceu o Prêmio São Paulo de Literatura com Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida/Patuá, 2014 e indicada duas vezes ao Prêmio Oceanos, a pernambucana de Arcoverde Micheliny Verunschk foi a grande vencedora do Jabuti do ano passado com seu romance literário O som do rugido da onça/Companhia das Letras. A trama é uma fábula baseada em fato real do rapto de duas crianças indígenas da Amazônia (a garota Iñe-e e o adolescente Juri) pelos cientistas alemães Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius, que realizaram uma expedição científica no norte do país entre 1817 a 1820.
Micheliny partiu do fato real para criar uma obra ficcional, que mistura fábula e realismo fantástico. A autora praticamente reconstitui o rapto e acompanha a ida para a Europa das crianças, que não resistem e morrem poucos meses após a chegada. Em entrevista a Mara Magaña, editora da revista Língua Portuguesa e Literatura, a escritora confessa:
“O que me motivou foi o espanto de que crianças tenham sido raptadas em nome da ciência e nem a literatura, nem o jornalismo e tampouco a historiografia tenha se importado com elas. O livro parte desse incômodo, de uma não aceitação da invisibilização dessas vidas e de sua tragédia”, esclarece Micheliny Verunschk.
A escritora pernambucana neste seu quinto romance da carreira, em que mistura realidade e ficção, utiliza uma linguagem rica de lirismo, além de trazer termos das línguas indígenas miranha (da tribo de Iñe-e) e nheengatu (língua pertencente à tupi-guarani) e termos criados por ela mesma.
Após a epígrafe que narra a criação do mundo pela cosmovisão do povo miranha, o livro se divide em três partes, cada uma delas com capítulos curtos.
A primeira parte, a maior delas, se passa no século XIX e o leitor fica conhecendo a realidade de vida das duas crianças indígenas, o trabalho em terras brasileiras dos exploradores/cientistas alemães Spix e Martius, a viagem de volta da expedição, em que quatro outras crianças não resistem e morrem no trajeto, e os primeiros meses de Iñe-e e Juri (rebatizados de Isabella Miranha e Johann Juri) em solo europeu.
A segunda parte começa com um dos trunfos da obra: uma personagem dos dias atuais, Josefa (seria alter ego de Mecheliny?) visita uma exposição na capital paulista, se espanta com a descrição de canibalismo e fica perturbada diante da imagem de crianças indígenas (Muxurana, Miranha e Juri). Intercalando o hoje e cenas do século XIX, a autora relata a vida das crianças na Europa, o triste desfecho de ambas e a decisão de Josefa em destrinchar a vida de Iñe-e e Juri, tanto que vai para Munique para tentar entender o porquê de sua identificação com a menina indígena e buscar um sentido para a sua vida.
Já na terceira parte do livro sobressaem o lirismo, o realismo fantástico e o uso de termos indígenas e neologismos. O passado e o presente se fundem, com o simbolismo da cultura indígena à frente da narrativa. Iñe-e onça se encontra com a Onça Grande e de criança se torna adulta, Uaara-Iñe, que vai redesenhar sua existência.
Uma obra densa, importante e necessária, justamente por trazer questões delicadas da história brasileira – extermínio de tribos indígenas, colonialismo, o horror da escravidão e o descuido com o meio ambiente -, que são revisitadas e reinterpretadas. Em termos linguísticos, O som do rugido da onça me remeteu ao clássico Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa; a questão da formação do brasileiro (indígena, negro e branco) apresentada em Macunaíma de Mário de Andrade também é discutida por Micheliny. Na contracapa do livro o escritor Itamar Vieira Junior define muito bem a obra:
“Este romance captura com habilidade o retrato de um país moldado na tragédia da exploração colonial e o drama vivido pelos povos originários, que se estende de forma estarrecedora aos nossos dias. Ao sermos confrontados com o éthos dos povos indígenas, podemos decidir se leremos essa história como estranhos ou se nos permitiremos conceber uma maneira nova de elaborar o mundo que nos cerca.”
Ficha técnica:
Título: O som do rugido da onça
Autor: Micheliny Verunschk
Editora: Companhia das Letras, 160 pgs
Preço: R$50,00
Maurício Mellone é jornalista com mais de 40 anos de estrada. Fez carreira na imprensa de São Paulo – rádio, TV, impresso e assessoria de imprensa. Hoje mora no Recife e, aqui no Blog Edgard Homem, escreve sobre a literatura produzida por autores brasileiros. Maurício também tem um espaço só seu: vai lá no www.favodomellone.com.br.
Foto destaque, Micheliny Verunschk: Renato Parada.
Demais fotos: divulgação.
Muito massa!!
Arretado demais.