A imagem do homem apoiado no parapeito da janela ficou na sua cabeça. Uma boa faxina na casa para o réveillon é quase uma tradição, mas isso não justifica tamanho risco. Não dava para ver se havia mais gente naquele apartamento. Também nunca saberia se a vidraça tinindo de limpa era uma exigência dos donos da casa.

Fechou as cortinas. Suas pernas tremeram ao pensar que uma tragédia poderia ter acontecido bem diante dos seus olhos, no último dia do ano. Imaginou a rua cheia de curiosos, ambulância, carros de polícia.

Era início da tarde. Já se ouvia o som de fogos. Logo mais, à meia-noite, ela estaria brindando com a família, vestida de verde, cheia de esperança. Abriu mais uma vez as cortinas para espiar o prédio da frente. Tudo calmo. Nem parecia que um trabalhador havia arriscado a vida por uma janela que logo estaria suja novamente.

Alguém naquele apartamento havia minimizado os riscos, negligenciado a vida. Felizmente, o pior não tinha acontecido. Seu coração de mãe ficou apertado. Será que aquele homem tinha mãe? Todo o sentimento de esperança de uma mãe poderia ter sido destruído em questão de segundos.

Saiu da varanda. Precisava retomar os preparativos para a ceia. Não queria ficar triste na véspera de Ano-novo, mas a imagem do faxineiro com o rodinho na mão, sem nenhuma segurança, continuava na sua cabeça. Não sabia nada sobre ele. Não sabia se tinha muitos anos de ofício, se queria agradar, se cumpria ordens, se não tinha nada a perder.

Ela nunca havia arriscado a vida. Nem por aventura, nem por necessidade. Não arriscaria a sua vida por nada. Era o seu bem mais precioso. Entendia bem a gravidade da situação, e não conseguia agir como se aquela cena não tivesse existido.

Decidiu ir até o prédio da frente para deixar o número do seu telefone com o porteiro. Gostaria de ser avisada, caso o faxineiro do oitavo andar aparecesse no condomínio. Tinha um primeiro compromisso para a sua agenda: evitar que uma vida fosse menosprezada.

Enfim, relaxou. A virada seria alegre como sempre. É certo que algum estraga prazeres iria aparecer para dizer que tudo estaria igual no dia seguinte. Mas ela não dava ouvidos a esse tipo de gente. Acreditava na renovação. Tinha fé.

A autora

Daniella Freitas é natural do Recife, é jornalista de formação e contista por necessidade.

Fotos: divulgação.

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Daniella Freitas

Natural do Recife, é jornalista de formação e contista por necessidade.

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