Por trás do histórico edifício Caetano de Campos, no meio da Praça da República, em São Paulo, tinha uma sala de espetáculo, meio escondida, aos transeuntes. Foi ali que assistiria, no início dos anos 1990, ao meu primeiro show de Luiz Melodia (1951-2017). Assistiria, pois com as luzes da plateia já às escuras, alguém vem ao palco e pergunta se havia algum médico no recinto. Sobem às pressas pela coxia duas jovens médicas. Luiz Melodia passara mal. Só pude assistir ao espetáculo alguns dias depois. Foi o primeiro e último. Mas eterno!

Aquele homem de dois metros de altura, assim aparentava Luiz Melodia no palco, se movia com a leveza de um gato. Um negro gato, com brilho próprio, muito particular, talvez único, sob o refletor da Música Popular Brasileira. 

Despretensioso, discreto, diria, rouba a cena, tal como os próprios felinos chamam atenção ao cruzar silenciosamente nosso caminho, ao acaso do cotidiano. Foi exatamente assim o meu contato musical com Luiz Melodia, ao ouvir a canção Magrelinha (álbum Pérola Negra, 1973), pela primeira vez.

Tenho a sensação hoje de que amamos Luiz Melodia de graça. Assim como gostamos das pessoas, ainda que raramente (ou quase nunca), pelo que elas são, sem exigir nada em troca, sem criar expectativas, sem invejas ou ciúmes, sem querer mesmo acrescentar nada ao seu modo próprio de existir. Nunca me interessei pela vida pessoal do grande artista. Mas suas canções estão sempre presentes no meu fone de ouvido, nas caminhadas diárias, desde o Pina ao Acaiaca (edifício modernista de Delfim Amorim, projeto de 1957, na Av. Boa Viagem, no Recife).

Mas ontem foi diferente. Corri para assistir à pré-estreia nacional do documentário Luiz Melodia, no Coração do Brasil (2024, 75 min), no Cinesesc-SP. Com certo receio, confesso, de que este filme desconstruísse caminhos já trilhados a Melodia.

Qual o quê! Saí refastelado e emocionado do Coração do Brasil, dirigido por Alessandra Dorgan, a partir de um espesso e demorado trabalho de pesquisa de Camila Camargo. A direção musical é de Patrícia Palumbo.

Montado exclusivamente com imagens de arquivo, muitas delas inéditas, cedidas por Jane Reis, viúva do poeta, o documentário é um mergulho na poesia, nas canções e no artista, que não se dobrou ao deslumbramento do sucesso e aos ditames da indústria fonográfica. Luiz Melodia fez parte dos homens imprescindíveis, para citar uma máxima de Bertolt Brecht. Por isso, talvez, gravou apenas sete álbuns em sua trajetória. 

São entrevistas de época, fragmentos de seus shows, com excertos de artistas cantando suas composições, Gal Costa, Maria Bethânia, Elza Soares, Zezé Motta, entre outros documentos e trechos de filmes de Júlio Bressane, Nelson Pereira dos Santos e Andrucha Waddington. O resultado dessa engenhosa montagem de Joaquim Castro estrutura uma narrativa exemplar de Luiz Melodia: no Coração do Brasil, na dimensão que a trajetória de décadas do artista exige. As diretoras afirmam no bate-papo após a exibição do filme que o interesse principal da obra estava voltado principalmente à produção musical do poeta, revelando o quanto Luiz Melodia é contemporâneo e atemporal. 

O entorno do artista interessa no documentário, mas como lastro dessa criação diferenciada, particularizada, livre, isto é, de um compositor que nasce e cresce no Morro de São Carlos, no bairro de Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, mas se nega a ser um compositor de sambas, embora nunca tenha abandonado suas raízes e influências musicais dos sambistas cariocas. É neste sentido, talvez, que a vida privada de Luiz Melodia – mulher, filho, patrimônio, herança, amor, desamor, sua própria morte – parece sucumbir diante da grande-arte-pérola negra!

Luiz Melodia, no Coração do Brasil foi eleito o melhor filme da 16ª edição do In-Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical, em 2024. O filme está em cartaz em 35 salas de cinemas no Brasil. Tenho quase certeza de que vocês sairão do cinema cantarolando Pérola negra, te amo, te amo!

Bairro de Campos Elísios, São Paulo, 16 de janeiro de 2025.

Angelo Brás Fernandes Callou

Ele é Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova Lisboa.

Imagem de abertura do texto, cartaz de Luiz Melodia, no Coração do Brasil: divulgação.

Imagem do autor do texto: divulgação.

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Angelo Brás

Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova Lisboa.

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