“Mais de um ano após as filmagens, de um AVC sofrido pelo diretor já plenamente recuperado e de fatos – nada é aleatório – que potencializam seus símbolos, Piedade, o sétimo longa de Cláudio Assis, está com sessões gratuit’s de pré-estreia pelo ItauPlay até este domingo.

Integra uma das primeiras mostras virtuais de grande fôlego durante esta pandemia que, além de nossas vidas, mudou o curso do filme.

Assisti sexta-feira, 19.

Ao fim da “sessão”, vieram pensamentos agarrados como manchas de óleo à flutuação de sempre. Numa das marolas, lembrei deste texto que escrevi no caderno de Cidades, então sob comando do meu amigo e sempre professor de jornalismo (ele vai odiar a deferência), André Malagueta, do Jornal do Commercio.

Fazia parte de uma série de reportagens sobre as mudanças na geografia física e social do Litoral Sul a partir dos grandes empreendimentos deflagrados a partir da tão aguardada Refinaria de Suape, um projeto da elite ilustrada pernambucana alimentado com desejos hormonais desde os anos 197O.

Este trecho é exemplar – e atual. Mudam-se alguns dados, e o parágrafo permanece.

O ano do texto original é de 2011:

“De um lado, a Reserva do Paiva, um eldorado litorâneo onde o aluguel de uma casa de cinco quartos, 800 metros quadrados, pode custar R$ 30 mil por mês. Na outra extremidade, o Complexo Industrial Portuário de Suape, símbolo da decantada redenção econômica que pode, numa perspectiva cheia do otimismo provocado pelo assunto, tornar o PIB pernambucano equivalente ao de todo o Nordeste em duas décadas. Entre o luxo e o porto, há um conjunto de praias onde quintais viram cortiços, invasões ocupam matas, favelização e águas cristalinas são tão comuns como a violência dos subúrbios do Recife. Assaltos e homicídios constantes como coqueiros. Agora, no Cabo de Santo Agostinho, o terror tem vista para o mar.

“Nunca mais volto numa destas praias”, diz o montador Marcelo Alexandre da Silva, 40 anos. No dia 23 de outubro, o funcionário da Odebrecht foi encontrado semimorto, depois de ter a casa assaltada em Enseada dos Corais. Milagrosamente, recupera-se de um traumatismo que deixou a cobertura do crânio frágil como a de um recém-nascido. “O médico disse que se um caju cair na minha cabeça, morro”, comenta. “Ali, não tem uma semana sem homicídios. Não deixo amigo ou parente passear naquela região”. Marcelo havia se mudado para o litoral porque, além de estar perto do trabalho em Suape, pensava em recuperar a qualidade de vida que o Recife violento e engarrafado não permitia. Uma ilusão litorânea.

Enquanto Suape não faz o PIB de Pernambuco pular dos atuais R$ 80 bilhões para R$ 400 bilhões e um Plano Diretor para a zona de influência do complexo não passa de uma série de projetos em rascunho, sobram mazelas sociais nunca vistas desde que o porto surgiu há 33 anos. “Isso aqui parece o paraíso. Mas é o inferno disfarçado”, compara o alemão Gerard Sattelmayer, 56, com residência provisória em Gaibu. Mora na praia enquanto trabalha num sistema de engenharia industrial no Centro do Cabo. Ele já viu dois tiroteios diante das piscinas naturais que emolduram a janela de sua suíte. “Só saio do hotel para o trabalho”, afirma o engenheiro. “Vi um homem matar duas pessoas na praia e sair andando”.

Longe de ser privilégio de um gringo facilmente identificável para bandidos em busca de desavisados, a violência é rotina da gente bronzeada que se confunde com a paisagem.

(…)

É notória a diferença entre as praias vizinhas do Paiva e de Itapuama. Nos 8,5 quilômetros do Paiva onde, segundo o slogan, “Um estilo de vida único espera por você e sua família no primeiro bairro 100% planejado de Pernambuco”, seguranças e câmeras discretas mal atrapalham o canto dos pássaros. Nas outras praias, puxadinhos e casebres encastelam-se uns sobre os outros. Esgotos correm na rua. E, mais que isso, sobra gente. Muita. E de sotaques variados. São pelo menos 47 mil homens envolvidos.

(…)

Nos bastidores, comenta-se que, para cumprir as metas ousadas, Suape saiu contratando desesperadamente peões de fora do Estado. Sem critérios. “Todo mundo aqui sabe que os canteiros estão cheios de bandidos com documento falso. À boca miúda, sempre um comenta que outro tem um, dois homicídios nas costas”, diz, em reserva, um funcionário.

(….)

De volta a 2020:

Sétimo longa de uma filmografia obsessiva e contundentemente corajosa, um anti-Fellini na poética das marginalidades que o cercam, Claudão tem no filme um pouco deste texto. De vários textos que podem ser lidos por trás do filme.

Com dona Fernanda Montenegro, até pouco tempo uma das genuínas unanimidades deste país de novos santos de barro, e um Cauã Reymond outra vez num grande salto de coragem e musculatura emocional para além das caixinhas do mercado que o que o quisessem adestrado como apenas galã, o filme traz também Matheus Nachtergaele e Irandhir Santos Matheus, dois dos grandes animais cênicos deste País, escalados por Cláudio – que de bobo nada tem – para estruturar sua poética em vários de seus filmes. Nachtergaele está em todos os longas do diretor.

Lembro ter encontrado Matheus aqui no litoral no já tão distante começo deste ano que, então, era uma outra era. Participava da @mostradecinemadeCarneiros, um projeto da @pousadapraiadoscarneiros de levar essas narrativas audiovisuais recentes não apenas para a turistada dourada que aqui queima a pele, mas para municípios e comunidades ribeirinhas que, não raro, nunca puseram os olhos e pés num cinema.

E Matheus dizia também que a tragédia do óleo trazia novas camadas de simbologia pra Piedede. E de como, durante as filmagens, atores como ele conviveram com moradores, caiçaras e ribeirinhos, sob ameaças constantes. Todas para um só ponto: a de deixarem de existir.

Pela primeira vez na carreira de Claudio, o diretor lança mão de recursos de melodrama, como a autobiográfica narrativa do irmão perdido e posteriormente (quase) recuperado. Mas, em linhas gerais, Piedade é sobre a tragédia. Se houvesse cumprido a promessa, Suape seria sozinha equivalente à economia do Nordeste.

Governos, elites, populistas de várias cores e a maioria afirmativa da grande mídia da qual fazíamos e fazemos parte compravam aquele discurso desenvolvimentista sem pedir troco.

Ouvi editores de economia dizerem: o que são um bando de pescadores diante da possibilidade de o estado virar um tigre asiático?

Não havia, contudo, inocência.

Outra vez, tomava um vinho – italiano, lembro bem – com um amigo. Era economista responsável pelo projeto de Suape na Agência de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco.

Eu ponderava: “Mas são mais de 45 mil homens atraídos de todos os lugares do Brasil para trabalhar nos canteiros. Sem critério. A violência explodiu. As meninas estão grávidas e abandonadas. O HIV explodiu. O esgoto abre línguas nas praias. Gaibu e Enseadas do Corais estão favelizadas. Não há um final de semana sem que haja assassinatos na praia e em plena luz do dia”.

Ele tomava um gole daquele tinto, mordiscava o queijo mofado à nossa disposição, e concordava com a cabeça.

“Sabemos de tudo isso. O importante agora é viabilizar os empreendimentos. Depois, a gente resolve esse passivo”.

O passivo não foi resolvido.

Piedade tem sua pré-estreia justamente uma semana depois de a equipe da @marcozeroconteudo ganhar o Cristina Tavares.

Pela primeira vez, um veículo pequeno, independente, feito por colegas com quem já trabalhei nos jornalões e gente nova que chegou ao horizonte quando a grande mídia (por razões que dariam um seminário) vai deixando de ser grande, ganha o principal e tão tradicional prêmio de jornalismo do Estado.

Obrigado, Marco Zero: porque, feitas por vocês, essas reportagens nos dão uma sensação de um prêmio para além da equipe. É mesmo um prêmio coletivo.

A série de reportagens O Avesso de Suape trata justamente da tragédia – uma tragédia, como todas, hecatombe de destinos.

Uma história que Claudão, pra ser Claudão, conta com doses generosas de hormônios.

O sexo é elemento estruturante do cinema de Assis e, sim, objeto pros tabloides virtuais deitarem na cama em que deitaram. Há cenas de grande potência erótica entre Nachtergaele e Cauã – sim, rapazes, vocês estão deliciosos na tela.

Mas essa é uma história mais de dores que de gozos.

Numa das ondas, claro, também, lembro de quando Camila Valença, a produtora, me convidou de supetão para participar das filmagens. O que rendeu um artigo publicado em seguida, também no JC, sobre o que é estar entre as tensões de um set de Claudio no centro depauperado do Recife.

Ao assistir ao filme, ontem, etendi nossos papeis de figurantes mais de corpos que de rostos.

Como na tragédia grega, nosso coro, aqui orquestrado em secreções e feromônios, copula e goza como quem comenta o destino patético, arruinado entre identidade e capital, progresso e pertencimento, daqueles seres no cinema pornô sob a posse do personagem de Cauã.

Haverá ejaculações, jamais gozo ao final.

O filme está em cartaz até amanhã. Devido ao grande número de acessos, gratuitamente.

No litoral sul, onde moro enquanto o vírus mora no próximo abraço, o sol entre dias de chuva só aumenta as camadas de informações que Piedade vai acendendo.

Acordei com a memória de uma cena em que Fernanda Montenegro e Cauã conversam sobre afetos, sentados num barco simplório flutuando sobre um braço de maré repleto de tubarões.

Ao fundo da Praia da Saudade, os ferros do Porto de Suape definem o começo de um céu laranja-sangue.

Uma imagem simples, uma metáfora direta.

Abaixo, alguns links. Para o filme e para a narrativa que ele traz para além da tela.

Só não comprem a camisa: aqui, o petróleo não é nosso.

https://jc.ne10.uol.com.br/…/um-dia-num-filme-de-claudio-as…

https://marcozero.org/category/suape/

https://www.itaucinemas.com.br/espacoitauplay/ “.

Bruno Albertim é jornalista, escritor e antropólogo.

Fotos: divulgação.

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Edgard Homem

Por aqui transitam a arte e a cultura, o social – porque é imprescindível dar uma pinta de vez em quando, as viagens, a gastronomia e etc. e tal.

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