Cerca de 200 bilhões de reais: pelas contas do instituto Data Favela, este é o potencial de consumo, em 2023, deste tipo de agrupamento urbano em todo Brasil.

Para efeito rápido de comparação, o PIB de uma cidade densa como Salvador fica em torno de R$60 bilhões.

Pomo de Adão para as políticas assistencialistas, projetos sociais de conveniência e fonte calculada de brasilidade cosmética, a favela é, talvez, desde a segunda metade do século 20, a grande revelação sobre a possibilidade das convivências humanas do Brasil para o Ocidente.

Você já foi à Rocinha, nega? Então, vá!

Aqui no Rio, a Rocinha segue sendo o que sempre foi: o arquétipo mais bem acabado do Brasil não oficial, erguido na urgência do improviso com material de construção de refugo e fuzis de segunda (reportagem recente de O Globo diz que, pelo menos cem deles, no valor total de R$3,5 mihões, circulam na comunidade). Já o samba e funk são de primeira.

No imaginário nacional, um Brasil basilar na diferença entre riqueza e pobreza.

Formada, majoritariamente, por migrantes nordestinos a partir dos anos 1920, a história oficial conta que a Rocinha surgiu a partir das pequenas roças criadas por seus novos moradores, para abastecer com as hortaliças do morro, os bairros vizinhos de São Conrado e Gávea. Hoje, são 20 mil famílias e pouquíssimas roças e desde a controversa pacificação, é possível estender nossa carioquice de final de semana por ali.

Apenas 1,8% das casas na Rocinha pode ser acessada por carro e só 30% das ruas mais visíveis estão pavimentadas. Um caleidoscópio de becos e vielas íngremes, onde só chegamos através das lentes de documentaristas ungidos pelas autoridades locais.

Eles já não pavoneiam suas armas pelas vias principais, onde a UPP, de fracassos e alguns acertos acumulados, simboliza, ainda, a pacificação entre o morro e o asfalto. Mas estão lá: acione, portanto, a cara de paisagem caso pegue uma passagem menos transitada e se depare com um garoto de AR-15 a tiracolo – com a malemolência de um tamborim. Há pelo menos quatro décadas, a Rocinha é o principal centro abastecedor do mercado de drogas na Zona Sul do Rio de Janeiro.

E também de muito dinheiro da economia (quase) formal. Quatro de cada dez moradores, diz o DataFavela, são empreendedores. No início da comunidade, a Via Appia oferece de cachaça e torresmo e macaxeira (fala-se “aipim”), a drinques e pizzas, pastas e carpaccios, como a justificar o nome emprestado da via italiana.

Nesta cidade que come tudo que a boca come, a Rocinha é, também, destino boêmio e gastronômico dos velhos e novos cariocas. Programinha “raipe” na cidade, ainda hoje, é gastar um sábado nos seus altos.

Um dos motivos é o Mirante da Rocinha – o dono já abriu sucursal, em forma de quiosque, no calçadão de São Conrado. No ponto mais alto do morro, o restaurante-café-bar oferece a vista como bônus mais que extra da comida: uma visão quase olho-de-peixe do Cristo e Corcovado, o paredão verde musgo da Floresta da Tijuca, o bairro da Gávea, a Lagoa Rodrigo de Freitas e um naco generoso do mar entre Ipanema e Copacabana.

Com essa vista, até azeitona de supermercado se torna foie gras de bistrozinho. 

O que, aliás, justificou a cobrança de ingressos. Para evitar o público disposto a abastecer o Instagram diante de uma e interminável latinha de refrigerante, há seis meses cobra-se 15 pilas pela entrada.

Nos finais de semana, rola café da manhã e, todos os dias, uma (apenas) boa comida “contemporânea”. O preço é asfalto: o entrecôte com fritas (generoso e individual) custa 70 pratas.

Neste ponto, onde a Rocinha é mais Leblon, um quadrado cheio de garrafas e taças emula bar de hotel, de onde saem (não provei) drinques caros e vistosos. Cerca de 40 mangos cada. Contrariando o mantra geral do morro, aqui não tem cerveja de 600. Só “longuinetis” – brasucas e gringas.

Cansou da vista e acha que já deu de lounge de favela?

Um rolé pela Estrada da Gavea (logo na frente) e nós voltamos ao real. No boteco Favorita, há PFs com feijão preto e denso de responsa, cominho no bife indicando a origem nordestina da casa, e aquela gelada.

No vizinho Paula Bolos, brigadeiros e tortas de Ninho ou Red Velvet de matar a larica e apresentação tipo bolo de reality show de confeitaria.

Com disposição, e muita atenção no trânsito, já que quase não há calçadas, dá pra descer o morro andando até São Conrado ou a Gávea.

Para, inclusive, perceber que a principal via da Rocinha é metade comércio do dia a dia; metade botecos, uma outra quase metade de igrejas neopentecostais mais barulhentas que pagode e, outra mais que metade, uma profusão de lojas de roupas grifadas by Armani, Gucci e Vuitton, capazes de fazer o porto italiano de Gomorra, epicentro mundial da clonagem de grifes europeias, parecer uma singela fábrica de brigadeiros.

Tem que saber chegar: de taxi ou num dos minibusões que cruzam a Rocinha, entre a Gávea e São Conrado. O meio mais procurado pelos forasteiros, contudo, é o mototáxi – pega perto do metrô de São Conrado e sai por R$10,00.

É sobe e desce de botar no chinelo um buggy em Genipabu. É experiência de dar ao trânsito de Nova Deli, a aparência de um desfile de misses.

Quando o tráfego trava, mais de 300 motos podem estar engarrafadas ao seu lado. Difícil de saber o que é máquina e o que é gente. Rocinha Way of Life.

Camarão com shiitake do Mirante da Rocinha. 70 pilas. Rocinha gourmet.
Assim é.
No boteco Favorita, comida do dia a dia.

O pernambucano Bruno Albertim é jornalista, escritor e antropólogo.

Fotos: divulgação.

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Edgard Homem

Por aqui transitam a arte e a cultura, o social – porque é imprescindível dar uma pinta de vez em quando, as viagens, a gastronomia e etc. e tal.

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