Eu não sei dizer
Nada por dizer
Então eu escuto

Se você disser
Tudo o que quiser
Então eu escuto

Fala, fala

Se eu não entender
Não vou responder
Então eu escuto

Eu só vou falar
Na hora de falar
Então eu escuto

Fala, fala

Fala – Secos & Molhados – composição de João Ricardo e Luli.

“Se eu não tiver e-mail… Calma, quem não tem e-mail? Ainda se usa e-mail? Sim, para você participar de uma teleaudiência no judiciário nesse período pandêmico, há de ter e-mail e baixar um aplicativo tipo zoom ou meet. Que nem é zoom, nem é meet. É outro. Estamos falando de inclusão digital, que na minha bolha está ok. Porteiro com zap. Ok. Faxineira com zap. Ok. Entregador de água com zap. Ok. Idosa com celular e fotos da neta. Ok. Não. Não estava e nem está ok.

Nada por dizer quando se descobre que inclusão digital não é ter celular ou zap. Isso é só um chip que custou 15 reais e se de 3 em 3 meses eu colocar crédito, não perco a linha e ainda posso compartilhar a wi-fi com a vizinha – que de tão pegadas as casas, o sinal pode ser dividido. No celular não cabe mais nenhum aplicativo para ser baixado, e vai explicar para uma idosa que ela tem que ter um tal de e-mail para ser intimada. Não, não estávamos digitalmente incluídos.

Do outro lado, estou fazendo reuniões de como enfrentar tudo isso. Cidadania tentando dar respostas. Houve dia em que passei 7 horas sentada em frente ao notebook, foram 3 reuniões dos mais diversos assuntos. Sim, sou tão incluída digitalmente que qualquer dia meus filhos vão marcar reunião no zoom para passar mais tempo comigo.

A faxineira não vem mais e eu estou cumprindo o acordado: contribuo realizando parte dos serviços dela no mês. Fizemos uma matemática para pagar metade e ela trabalhar um dia a mais por semana quando retornar. Negociamos. Não, não negociamos; falei, foi aceito, me sinto bem e ela menos aperreada. Fiz o mesmo com a manicure e a depiladora. Então, entre um zoom e outro ou câmera e microfone desligados, vamos fazendo o feijão, o arroz, passamos o aspirador (comprei aquele que é mais leve, parece vassoura), colocamos as roupas na máquina de lavar e, claro, nenhuma é passada a ferro. 

Entretanto, há prazer (embora cansativo) em frente ao computador: o círculo de oração todos os dias às 18h, a yoga, a aula de francês com a filha adolescente-adulta (dividir tela em aula é só amor), as reuniões com o clube de leitura e as lives com a família e amigas. Costuro com a pequena e cozinho com o mais velho, o que é bem real.

Do que eu não sei dizer? Não consigo ler como antes, concentração péssima, mas estou cobrando dos meus filhos concentração plena para estudar. Não bastasse estar numa bolha digital, pertencer ao seleto time dos que podem doar na pandemia, de ter o grupo de orações, da escuta, da yoga, ainda virei pessoa que age contrária ao discurso. Filhos, façam o que eu não consigo fazer. Finjam que está tudo bem e estudem como antes.

Fala. Esta pandemia, além de revelar nossos privilégios, revela o que podemos fingir nos adaptar e fazer cara de sintonia quando alguém diz que devemos agradecer o lugar de privilégio, porque é bom estar em casa. Então eu escuto”.

Sou Irene Cardoso Sousa, incluída digital, companheira, promotora de justiça, coordenadora do GT Racismo-MPPE, costureira, taróloga e integrante do Escutatória (siga no Instagram e caso deseje ser escutado, estou à disposição online aos domingos. Conta que faço pães de fermentação natural?

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Edgard Homem

Por aqui transitam a arte e a cultura, o social – porque é imprescindível dar uma pinta de vez em quando, as viagens, a gastronomia e etc. e tal.

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