“Essa bruxa solta pela cidade

Não vai partir, não vai morrer

Vai viver no amor de cada mulher.” (Taiguara)

“Leila Diniz – sobre as convenções esfarinhadas

mas recalcitrantes, sobre as hipocrisias seculares

e medulares: o riso aberto, a linguagem desimpedida, a festa matinal do corpo, a revelação da vida.” (Carlos Drummond de Andrade)

Hoje faz 51 anos que Leila Diniz faleceu, num desastre aéreo, em Nova Delhi, Índia. Tinha 27 anos. 

Lembro-me perfeitamente desse dia, 14 de junho de 1972. As notícias chegavam aos pedaços. Uma comoção nacional se instalara, entre aqueles que lutavam ou eram contra a ditadura militar no Brasil, imposta em 1964. 

Leila era odiada, censurada e perseguida pelos militares e conservadores, gente ligada ao lema fascista Deus, Pátria e Família. Os motivos? Expôs, de biquíni, sua barriga de grávida, na praia de Ipanema; revelara que transava de manhã, de tarde e de noite; falava palavrões, corriqueiramente; defendia o amor livre e a liberdade. Leila Diniz era uma bruxa solta pela cidade, como revela a belíssima canção, Memória livre de Leila, homenagem de Taiguara à atriz.

Como eu convivia na adolescência com pessoas da geração anterior à minha, que lia O Pasquim, a Rolling Stone, ouvia os Beatles, Luiz Gonzaga e os tropicalistas, podia acompanhar, com certa regularidade, as notícias da bruxa de Ipanema, na então Califórnia brasileira. Tudo que despontava de moderno na recém-nascida indústria cultural do país, o Rio de Janeiro era o aglutinador dessas forças inovadoras. Leila Diniz era uma força centrífuga feminina da liberdade, em meio à tortura e à escuridão política.

As atitudes de Leila eram um deleite que contrastava com o vivido no Colégio Salesiano, onde eu estudava. O convite dos padres para participar do grupo musical Os Grilos, espécie de coro por eles organizado, era o cúmulo da caretice, diante do mundo tenebroso lá fora. Convite rejeitado! Eram dois planetas que não se alinhavam nunca.

Da Leila Diniz atriz, recordo-me, vagamente, de ter assistido apenas a Todas as mulheres do mundo, alguns anos depois do lançamento, em 1967. Por este filme, dirigido por Domingos de Oliveira (que foi casado com a atriz) e Eduardo Prado, Leila Diniz recebeu Menção Especial do Júri, do Festival de Brasília. Tinha apenas 22 anos!

Para me reencontrar com essa adorável bruxa e com o Brasil de então, e, talvez, com aquele adolescente que eu era, assisti a 12 filmes da atriz (quase todos disponíveis gratuitamente, vide referências), dos 15 trabalhos realizados no cinema, em sua carreira densa e meteórica. 

Distintas e surpreendentes são as mulheres de Leila Diniz, plasmadas na tela da TV, nestes últimos dias. Uma viagem cronológica no seu legado fílmico, minha homenagem a essa grande mulher. 

Entre as mulheres de Leila estão: a recatada e do lar (A madona de cedro); a dedicada ao amor e à crença nele (Mineirinho vivo ou morto); a cangaceira (Corisco, o diabo loiro); a adúltera sem culpa (O homem nu); a “louca” (Azyllo muito louco); a transgressora (Mãos vazias e Fome de amor); a surpreendente na cama e compreensiva ao ser traída pelo companheiro (Todas as mulheres do mundo); e aquela que toma a iniciativa de convidar o homem à cama, em visíveis desconsertos masculinos, sem a pretensão de namorá-los, muito menos de casar com eles, mas desejante de um filho (Edu, coração de ouro); além das que representam a si mesma (O donzelo e Os paqueras).

Passadas tantas décadas do lançamento desses filmes, dirigidos por cineastas que marcaram a história do cinema brasileiro, a exemplo de Nelson Pereira dos Santos, Domingos de Oliveira, Luiz Carlos Lacerda, Paulo Cezar Saraceni, temos a impressão de que Leila Diniz reunia, em si mesma, um pouco de todas as mulheres que representava. Mesmo a mais recatada e do lar, era capaz de contornar e, muitas vezes, ultrapassar, interditos familiares, sociais, políticos e sexuais. Não à toa, Mirian Goldenberg escreve que “toda mulher é meio Leila Diniz”. 

É de se perguntar: será esse também um dos motivos que levaram diretores a escalar a atriz para representar mulheres tão distintas umas das outras, num contexto político adverso, como foram os anos de chumbo? Será que todas as mulheres do mundo em Leila Diniz a transformaram numa atriz versátil, portanto, livre (pois livre é todo ator que não cabe no perfil canastrão), como ousou Leila em sua própria vida?  O resultado do seu trabalho como atriz é fora do comum.

Dois filmes me chamaram atenção, particularmente no que diz respeito ao desempenho dramático da atriz, que vai muito além do que conhecemos dessa mulher à frente do seu tempo: Mineirinho vivo ou morto, seu filme de estreia (dirigido por Aurélio Teixeira, 1967), e Mãos vazias (dirigido por Luiz Carlos Lacerda, 1971).

Cartaz do filme Mineirinho vivo ou morto, 1967, direção: Aurélio Teixeira.
Fotografia: divulgação.

Em Mineirinho vivo ou morto, baseado num fato real, a atriz representa Maria, uma jovem apaixonada pelo seu namorado, Mineirinho (Jece Valadão), um mecânico de automóveis. Ao acaso da vida, Mineirinho se envolve numa briga de bar, que nada tem a ver com ele, e mata com uma garrafa de cerveja seu agressor. Sai em fuga, entra na criminalidade. 

O morro passa a ser seu lugar de refúgio e de solidariedade. Em certo sentido, Mineirinho vivo ou morto é um filme noir, pois envolve ingredientes claro-escuro, com grande densidade dramática, diligência policial corrupta, violência, cinismo, personagens arquétipos.

Mineirinho é nosso anti-herói. Torcemos por ele, diante das injustiças do mundo e da criminalidade, única saída para sobreviver numa sociedade que lhe dá as costas. O Rio de Janeiro de Mineirinho vivo ou morto é a infância do fosso social do que assistimos hoje numa escala quase intransponível no Brasil.

A cena final do filme é muda, com Leila Diniz dando banho de interpretação na sua mudez densa e juvenil, diante de uma realidade nua e cruel. Um rito de passagem de uma mulher que perde seu grande amor para as desigualdades sociais.

Cartaz do filme Mãos vazias, 1971, direção: Luiz Carlos Lacerda. Fotografia: divulgação

Mãos vazias leva Leila Diniz ao Festival de Cinema de Adelaide (Austrália). Na volta ao Brasil, ocorre o acidente aéreo. Postumamente, recebe o prêmio de melhor atriz do Festival, por esse trabalho.

Se em Mineirinho vivo ou morto, Aurélio Teixeira filma muitas cenas em close up, em Mãos vazias, ao contrário, as câmeras de Luiz Carlos Lacerda estão à distância de alguns metros dos personagens. Praticamente, não observamos os movimentos dos lábios dos atores ao falarem. 

O diretor privilegia as paisagens, os objetos, as ruas de Paraty, onde o filme foi rodado, embora a trama se desenrole numa cidade mineira tradicional. O espectador, a distância das cenas pelas câmeras, assume o lugar de observador, ao mesmo tempo em que lhe é “solicitado” refletir diante da retidão das imagens.

Provincianismo, interditos sociais, homossexualidade, preconceito, difamação, traição, solidão, condição social das mulheres, transgressão, perversão, sedução, crime e tudo o quanto representava a condição humana, sobretudo no que diz respeito às mulheres, interpela o observador. 

Trata-se de um país que expõe suas entranhas, através de um local arcaico, tradicional, atrasado e violento. Baseado no romance homônimo de Lúcio Cardoso, escrito em 1938, Mãos vazias, ao ser transposto para a tela no período da ditadura militar, reconfigura a violência social, diante de um país impedido de continuar os avanços políticos, do início dos anos 1960. Leila Diniz foi escalada para Mãos vazias, por se tratar de uma atriz capaz de interpretar um papel transgressor, como revelou o diretor do filme, Luiz Carlos Lacerda. (Sobre a personagem principal Ida, representada por Leila Diniz, vide o interessante artigo de Elizabeth da Penha Cardoso, O caminhar discursivo do feminino em Mãos vazias, de Lúcio Cardoso.)

Os anos recentes nos levaram a ficar novamente de mãos vazias, diante do lema Deus, Pátria e Família. Neste sentido, ouso dizer, que Leila Diniz não está apenas hoje em todas as mulheres, mas, também, em todos aqueles que se contrapõem às desigualdades sociais, à violência contra as mulheres, os negros, os indígenas, o diferente.

Leila Diniz está em todos nós.

Leila é nóis!

Referências:

Filmes

Todas as mulheres do mundo (1967). Direção: Domingos de Oliveira. Globoplay.

Mineirinho vivo ou morto (1967). Direção: Aurélio Teixeira.

https://youtu.be/V0qA9OQXcNc

Edu, coração de ouro (1967). Direção: Domingos de Oliveira.

O homem nu (1968). Direção: Roberto Santos.

A madona de cedro (1968). Direção: Carlos Coimbra.

Fome de amor (1968). Direção: Nelson Pereira dos Santos. Há restrição de idade, diponível no YouTube.

https://www.youtube.com/watch?v=z9JIYw_effM

Corisco, o diabo loiro (1969). Direção: Carlos Coimbra.

Os paqueras (1969). Direção: Reginaldo Faria. Há restrição de idade, diponível no YouTube.

https://youtu.be/63wHnPvRF1Q

Azyllo muito louco (1970). Direção: Nelson Pereira dos Santos.

O donzelo (1970). Direção: Stefan Wohl.

Mãos vazias (1971). Direção: Luiz Carlos Lacerda.

Amor, carnaval e sonhos (1972). Direção: Paulo Cezar Seraceni.

Música

Taiguara. Memória livre de Leila

https://www.youtube.com/watch?v=fBIxRzSqeO4

Textos

Cardoso, Elizabeth da Penha. O caminhar discursivo do feminino em Mãos vazias, de Lúcio Cardoso.

https://www.scielo.br/j/bak/a/vsVcBb5K9cgvRBPMmNzqwxv/?format=pdf

Lacerda, Luiz Carlos. Mãos vazias.

http://www.portalbrasileirodecinema.com.br/leila/filmes/cinema/02_03_12.php

Angelo Brás Fernandes Callou é Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova Lisboa.

Fotos de Leila Diniz e Angelo Brás Fernandes Callou: divulgação.

Angelo BrásAuthor posts

Angelo Brás

Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova Lisboa.

1 Comentário

  • Se à época tive pouca aproximação com Leila Diniz e sua arte, ao transgredir em favor da cultura que liberta, hoje Angelo Callou nos presenteia (a mim ao menos) com a história política e cultural dessa fabulosa mulher, personagem marcante em uma sociedade fascista. Grato Brás.

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