Cheguei numa idade em que tudo comemoro. Não precisa de festas, encontros, alaridos, ainda que aprecie confraternizações, em petit comité, como zombam de mim alguns amigos mais próximos. Uma boa taça de vinho, compartilhada ou não, já demarca o evento.
Hoje comemoro um ano de aposentado. Ouço colegas em situação similar dizerem: eu saí da UFRPE, mas a UFRPE não saiu de mim.
Eu devo ser exceção à regra, pois, inacreditavelmente, já não percebo a UFRPE em mim, depois de 50 anos de convívio com colegas e alunos queridos, árvores e jardins, e com o belo painel de Lula Cardoso Ayres, no salão nobre da instituição.
Não há nenhum desprezo de minha parte nisso, nem desamor, muito menos indiferença. Há uma memória pulsante, claro, pois estou vivo, mas de algo que passou, ou melhor, tudo que havia de ser feito na e pela UFRPE foi realizado, como aluno e professor. Uma espécie de Gestalt fechada, como dizem os psicólogos, a partir da qual se estabelece o equilíbrio consigo mesmo ou, quem sabe, com o mundo.
Numa busca incessante de permanecer um senhor de idade contemporâneo, isto é, ri de mim mesmo e não evitar o novo, pois o novo sempre vem, diz o poeta, fiz um balanço do ano: caminhei 720 km (com meu fiel escudeiro ao lado, Kalu, e fones de ouvido nas oiças para as árias, os clássicos do jazz americano e da boa MPB); faço pilates e um pouco de musculação; escrevi umas 20 crônicas para mídias sociais, sobre cinema, história e cotidiano; li livros (aguardo ansioso a obra Os Anos, de Annie Ernaux); fui a passeatas pela democracia e contra o genocídio em Gaza; faço minha própria comida, lavo pratos, encontro amigos (sempre em petit comité, claro!); leio o noticiário e dou gargalhadas com o telejornalismo brasileiro, de tão manipulada é a sua noticia; dou bronca em ciclistas, que furam o sinal de pedestre; recolho o cocô do meu cachorro nas ruas e só uso bermudas e camisetas, em quase todos os lugares; pintei uns 80 quadros, de diferentes dimensões e ouso criar ikebanas, quando os deuses baixam no meu apartamento, e tenho a coragem e a lucidez de dizer pra mim mesmo o quanto sou medíocre nessa arte secular japonesa.
Nos finais de semana, tomo cerveja na praia do Pina, regada à leitura e à “observação antropológica” dos vendedores na areia (ainda escrevo sobre isto) e dos clones humanos, como dizia Baudrillard, devido à similaridade dos gestos, das posturas, dos vestuários, dos adereços, das marcas coloridas no corpo, dos que transitam de cá para lá. Escuto atento, e de propósito, conversas alheias que chegam até a minha barraca, sem que as pessoas se apercebam, como fazia Pierre Bourdieu, em jantares e festas. Em geral, as mais interessantes vêm do contexto popular, emanando uma alegria peculiar e sincera de viver. As dos clones da classe média apresentam um conhecimento inacreditável de vinhos, de restaurantes e seus cardápios, que prometem, aos olhos e ao paladar, o céu, a terra e o mar, do belíssimo frevo-canção Ingratidão, de José Menezes e Neuza Rodrigues. Falam com desenvoltura praticamente sobre tudo. No final da tarde, o resultado é um mar de lixo deixado na areia da praia de toda uma sabedoria acumulada!
Praia do Pina, Recife, 16 de janeiro de 2024.
PS: Angelo Brás Fernandes Callou é Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova de Lisboa.
Fotos: divulgação.
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