Prestes a perder o ônibus, cheguei esfogueado à rodoviária de Lagos. Como deixar de ir a Sagres? O limite do mundo por quase três mil anos. O fim da terra. Esférica, claro.

Na escola primária, ouvira falar tantas vezes em Sagres, mais exatamente na Escola de Sagres, construída pelo Infante Dom Henrique, o impulsionador-mor dos descobrimentos portugueses, cujo ensinamento reverberava diuturnamente na memória, em virtude do nome Sagres, gravado num dos biscoitos mais populares da infância. Ir a Sagres era, portanto, um desejo que se cumpria, ao acaso, já que não havia incluído esse tão belo lugar, na minha passagem pelo Algarve. Mas a proximidade de Lagos a Sagres me levou, às pressas, àquele precipício do mundo.

Como não conhecia nenhuma imagem da cidade, foi com enorme surpresa que me defrontei, de imediato, com uma grandiosa península escarpada – a Ponta de Sagres –, e, sobre ela, uma fortaleza, onde supostamente também edificou-se a Escola Naval de Sagres. Na verdade, essa Escola nunca existiu, assim informa Thomaz de Souza, em seu artigo de 1958, “Ainda a Suposta Escola Naval de Sagres e a Náutica Portuguesa dos Descobrimentos”, baseado exclusivamente em historiadores portugueses, diz ele, para não ser taxado de lusófobo.

Olho à direita e, a distância, vejo outro promontório de rara beleza natural: o Cabo de São Vicente, também conhecido como Promontorium Sacrum, dedicado à adoração do deus Saturno, no período romano do território algarvio. Não vacilei. Tomo um táxi e sigo até aquele monumento de reverência ao tempo.

Foi em nome desse momento inesquecível, que me lancei, de pronto, à leitura do último livro de Nélida Piñon, Um dia chegarei a Sagres (Record, 2020, 510 p.). Esta obra consolidou em mim uma reflexão densa sobre o sentido da vida e da condição humana.

A narrativa se passa em Portugal do século XIX, portanto, sob o domínio da monarquia. O protagonista Mateus decide contar sua história, já idoso, no dia que coincide com a data do terremoto de Lisboa de 1º de novembro de 1755. Prenúncio de sua trágica memória, que culmina no promontório de Sagres. Diz ele: “Quem sou sem as ruínas das urbes humanas e sem os pedaços da minha existência? Quem sou sem estas histórias, meus escombros?” (p.8).

É da mais pura delicadeza a narrativa poética e sensual que Nélida Piñon constrói, a partir do mergulho na alma e na sexualidade masculina, e doa generosamente a seu protagonista, para que conte sua trajetória de amor e abandono – escombros de todos nós! A história de Portugal perpassa essa jornada, com ironia ácida: “os anos são ingratos, decretam a falência humana e seus efeitos nos igualam. Dessa forma, sei que sou semelhante ao rei na sua majestade fedida, que pouco se banha e impregna seu perfume nos rincões do palácio da Ajuda.” (p.10).

Influenciado pelas aulas de seu professor, sobre as realizações do Infante Dom Henrique, e sua crença no país de outrora, Mateus decide, após a morte do avô, que o adotara ao ser abandonado pela mãe ao nascer, partir de sua aldeia no Minho e atravessar o país a pé até Sagres. Diz ele: “O Infante, embora já não nos persuada a segui-lo nas aventuras marítimas, impulsionou-me a enveredar por sendas desconhecidas.” (p.28).

O livro trata desse percurso humano.

Destituído de bens, de recursos financeiros, carente de afetos, a não ser a memória do avô Vicente, Mateus se embrenha país adentro, como que à procura, nas entranhas de Portugal, do sentido da vida e do pertencimento a uma nação, cujo trono oprime seus súditos.

Alcança Sagres, sua grande escola. Não de astrolábio náutico ou de construção naval, mas a dos aprendizados humanos, suas contradições e dramas. Sagres não representa mais o limite do mundo, mas o próprio mundo, o da condição humana universal. Ali, Mateus conhece, enfim, o amor, embora não correspondido, diante dos interditos sociais; ali, também, renega um amor verdadeiro ofertado – seu desatino. Encontra-se com a maldade de frente. Vê a generosidade ao lado. Conjunto de lições tomadas que, reunidas aos abandonos sofridos, levam a uma tragédia nas escarpas do promontório. Seu degredo.

Foge este homem, mundo afora, porto a porto, realizando serviços precários para sobreviver, nas embarcações sem âncoras. Mas é só na velhice, já sem leme e sem mais possibilidades de recondução de rotas, que se encontra consigo mesmo, de maneira plena e verdadeira.

Angelo Brás Fernandes Callou é Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova Lisboa.

Foto: divulgação.

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Angelo Brás

Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova Lisboa.

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