Atravessei rapidamente os canais da cidade. Havia uma ansiedade em visitar o Museu Van Gogh. Era minha primeira estada em Amsterdã. Lá se vão algumas décadas. 

O museu reúne o maior acervo do artista neerlandês no mundo. São aproximadamente 1.400 obras, entre pinturas e desenhos. As mais importantes foram produzidas em apenas três anos, de uma vida breve. E dramática. Van Gogh morreu aos 37 anos.

Diante dos quadros do artista de pinceladas livres, espessas, de cores vibrantes, urgentes, em movimento contínuo, como a própria vida, naquilo em que ela é mais pulsante – a arte –, me entristeço. Não sei se acontece o mesmo com vocês: não consigo dissociar a obra de Van Gogh da sua vida solitária e trágica.

Não foram poucas as vezes que entrei no Museu de Arte de São Paulo para apreciar, à distância de trinta centímetros, as quatro obras do artista, no grande salão de exposição do acervo. Afixadas pela arquiteta Lina Bo Bardi em painéis transparentes de vidro, fincados em blocos de concreto, esta inovação na apresentação pública de quadros não foi capaz de mudar minha percepção do criador da criatura, na presença de um Van Gogh.

Diferentemente, por exemplo, de quando me defrontei, ao acaso da vida, numa rua larga, próxima à Praça Mauá, no Rio de Janeiro, com uma circunferência de ferro, de aproximadamente dois metros de diâmetro, com uns dez centímetros de espessura, cortada até o centro e puxada/dobrada na posição vertical. Uma escultura impactante, desconcertante e bela, na sua leveza de ferro e arte, no meio do caminho. Pouco importava o autor da obra, naquele momento. Só muitos anos depois, me interessei em saber o nome do artista: Amilcar de Castro.

Guardei para sempre esse instante, ocorrido há mais de 30 anos, chamado por Kant de sublime, isto é, quando uma obra de arte incomoda, desestabiliza-nos, agride e exige reflexão. Não por acaso, Glauber Rocha afirma que a função da arte é violentar.

Apesar da importância de Van Gogh na história da arte, por fomentar o movimento pós-impressionista na França, ao lado dos Paul – Cézanne e Gauguin –, foi sua vida conturbada, conhecida de todos nós (depressão, solidão, automutilação, loucura, morte prematura, genialidade), que o capitalismo aguçou seus interesses pelo artista. Penetrou até o osso na dor do outro, para introjetar a arte de Van Gogh em todos nós. 

Não à toa, a indústria do consumo reverbera pedaços da pintura do artista em tábuas de carne, bonés, camisetas, lenços, bolsas, agendas, papéis de parede, louças, gravatas, cartões-postais e marcas de tinta, para os que desejam sair da apreciação da pintura à produção artística. O cinema e o teatro fazem parte desse sistema nervoso. 

Se, de um lado, tudo isso me entristece, de outro, a genialidade da pintura de Van Gogh nos leva constantemente a enxergar, por metonímia, a beleza das coisas mais simples do cotidiano. Van Gogh, diz Gombrich, no clássico A História da Arte, “Ansiava por uma arte despojada que não atraísse apenas os connoisseurs endinheirados, mas propiciasse alegria e consolo a todos os seres humanos.” (p. 546) 

Como não me lembrar dos quadros de Van Gogh, ao colocar num vaso um girassol comprado, com certa frequência, nas proximidades do condomínio onde moro? Como não associar a extensa plantação de girassóis, que um dia vi no oeste do Paraná, à obra do artista? Como não admirar a liberdade de sua pintura, ao me debruçar sobre minhas aquarelas acovardadas? A arte é exigente nesse substantivo feminino. Van Gogh talvez tenha sido o mestre da liberdade, da qual foi vítima, na arte e na vida. 

Toda essa memória foi acionada, na medida em que caminho, lentamente, na grande tenda da exposição Van Gogh Live 8K, no Shopping RioMar, no Recife.

Na entrada da mostra, nos sentimos tencionados, ao percorrer de encontro às tiras de tecidos leves, cuja padronagem são recortes da pintura menos vibrante de Van Gogh, que caem do teto ao chão. O visitante não sabe aonde este caminho tátil o levará. 

Tudo que vem a seguir é puro encantamento. A tecnologia nos permite entrar na arte de Van Gogh, nos banharmos com suas cores, em movimentos estonteantes, como as próprias pinceladas pontilhadas da sua pintura, que o transformou num artista ímpar, influenciado pela pintura de Jean-François Millet, que o levou, intuitivamente, às artes plásticas.

Não vou descrever todo o percurso, pois cada transeunte vivenciará Van Gogh, a partir dos estoques de conhecimento que possui sobre o artista (estereotipados ou não), ou poderá construí-lo a partir desse momento inesquecível. Mas duas salas me impactaram de maneira particular, por isso faço aqui uma breve alusão a elas.

Uma, em que se escuta uma canção, incessantemente tocada na minha juventude, no disco Prisma, de Pink Floyd: Brain Damage (enfraquecimento cerebral, numa tradução livre). Novamente me entristeço, ainda que inebriado pelas cores de Van Gogh sobre meu corpo, dentro do meu corpo, na sala inteira. Eis algumas frases dessa canção: “There’s someone in my head but it’s not me. / And if the cloud bursts, thunder in your ear / You shout and no one seems to hear.”

A sala espelhada dos girassóis, mais à frente, para mim a mais impactante de todas, reproduz Van Gogh, por metonímia, ao infinito do espelho. 

Saio desse lugar mágico com a certeza de que os girassóis, por serem muitos, muitos Van Goghs hão de pintar por aí. Estão no mundo todo, no Brasil, no Recife, nas favelas, nas culturas populares. Como diz a canção referida, eles gritam, mas ninguém parece ouvir.

Serviço

Van Gogh Live 8K – Shopping RioMar

Até 7 de maio de 2023, de segunda a sábado, das 10h às 21h20 e domingo, das 13h às 20h20. Os ingressos podem ser comprados na bilheteria da exposição ou pelo link Van Gogh Live 8K – RioMar Recife. Os preços variam de R$30,00 a R$140,00.

Referências

Gombrich, E. H. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC editora, 16ª edição, 1999.

Pink Floyd –  Brain Damage: https://www.youtube.com/watch?v=DVQ3-Xe_suY

Angelo Brás Fernandes Callou é Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova Lisboa.

Fotos: divulgação.

Vincent segue inspirando-colorindo as nossas vidas. Aquarela de Angelo Brás Fernandes Callou.
Um dia me disseram que os muito ajutados a esse mundo, provavelmente, estão muito doentes. Aquarela de Angelo Brás Fernandes Callou.

Fotos: divulgação.

 

 

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Angelo Brás

Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História e Cinema pela Universidade Nova Lisboa.

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