Para Rosa Maria
“Clarice Lispector tem uma frase que devo muito a ela: “é que eu gosto de ver as pessoas sendo.” Está no livro Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres.
Como uma espécie de mantra, essa frase me acompanha desde quando comecei a ter mais contato com a literatura dessa ucraniana-recifense-carioca-brasileira, a partir dos anos 1980. Observar as pessoas sendo é um ato humano. Mas as sutilezas do estar sendo, muitas vezes, exigem refinamento na percepção do observador, pois nem tudo é dado a ver, tal como o conceito de punctum, de Roland Barthes, em relação à imagem fotográfica, em A Câmara Clara. Isto é, há um interesse subjetivo, diz ele, que se impõe no ato de olhar uma fotografia.
Pierre Bourdieu era também um observador atento das pessoas sendo, característica revelada em Esboço para uma Auto-Análise. A despeito das questões éticas aí envolvidas, faz um mea culpa no auge de sua maturidade intelectual, pois aceitou muitas vezes convites para festas e jantares, meramente com o intuito de observar as pessoas, consideradas por ele como agentes, sociologicamente falando, nesses espaços sociais.
Não há como não lembrar também de Clarice Lispector ao ler o extraordinário “O homem na multidão”, de Edgar Allan Poe. De impulso, o protagonista do conto se agasalha rapidamente, ao ver passar, de sua janela, um senhor idoso desconhecido, para segui-lo durante horas pelas ruas da cidade, observando todos os seus movimentos e atitudes, sem que ele se aperceba.
A literatura clariciana nos ensina a refinar nossa percepção sobre a condição humana, sempre à beira do abismo, ou, talvez, já nas suas profundezas. Não à toa a obra de Clarice Lispector tem despertado, ao longo dos anos, interesse entre os psicanalistas.
Ao ler Clarice, não foram poucas às vezes em que a chamei, carinhosamente, de bruxa, louca, vidente, sensitiva, e ficava a me perguntar como é possível ter tamanha compreensão da condição humana, em verdadeiras filigranas, que sua literatura evoca. Com delicadeza, vai modulando-demodulando a nossa existência, às vezes nominando o inominável, como o cheiro de peixe fresco, numa passagem de O Livro dos Prazeres. Ou o estar sendo, lírico, ingênuo, simples, esperançoso, de Macabéa, em A Hora da Estrela; ou, ainda, o silêncio-solidão da velhinha, na cabeceira da mesa, na comemoração dos seus 89 anos, no conto “Feliz aniversário.”
Clarice faz 100 anos. Está viva em todos os seus leitores. Sem ela, como posso compreender, em plena pandemia, o revigorante aroma de maresia que entra pela minha janela agora?”.
Magistral a crônica de Angelo Brás! Vestiu-me de encantamento não apenas por revisitar Clarice Lispector mas por me reconduzir à literatura de clássicos da semiótica que se tornaram meus “companheiros” de trabalho quando fazia o doutorado na USP, nos anos de 1990. Ou ainda mais recentemente quando Bourdieu ,em seu “Esboço de auto-análise” ensinou-me a escrever o meu Memorial. Parabéns Brás pela erudição, talento e sensibilidade!