Sodomita, o mais recente (e quarto) livro do escritor paulista Alexandre Vidal Porto, se passa no século XVII, mais precisamente em 1669, e resgata a história real de Luiz Delgado, um violeiro de Évora, Portugal, que fora degredado para Salvador, Bahia, acusado do crime de sodomia, código da época para homossexualidade.

Lançado no segundo semestre de 2023 pela Companhia das Letras, o romance mescla fatos reais da vida do violeiro com fábula. Assim o autor revive a trajetória deste personagem pouco conhecido, desde sua vida amorosa em Lisboa, seu processo no Tribunal do Santo Ofício e a condenação a degredo para o Brasil por sodomia, além dos vinte anos que viveu em Salvador, onde contrai um inusitado casamento com a órfã Florência, até a outra condenação e novo processo da Inquisição.

Nascido em São Paulo em 1965, Alexandre Vidal Porto é formado em direito pela Universidade de Fortaleza/CE e hoje é diplomata de carreira e mora em Amsterdã/Holanda, já tendo vivido em diversas cidades pelo mundo. Alexandre é um dos poucos embaixadores assumidamente gay, é casado com um cidadão norte-americano e já escreveu, além de Sodomita, outras três obras cujos temas se referem à comunidade LGBTQI+: Matias na Cidade/2005, Sergio Y. vai à América/2012 e Cloro/2018.

O que mais chama a atenção neste novo romance é a linguagem, em que o autor brinca utilizando de um falso linguajar português arcaico misturado com a linguagem oral dos nossos dias, tratando assim de temas que até hoje infelizmente somos obrigados a lidar, como o preconceito, a homofobia e autoritarismo exacerbado.

“Era acusado de praticar o mais torpe, sujo e desonesto pecado: a sodomia. …Pelas ditas culpas que o do violeiro Luiz Delgado havia na Inquisição contra a Santa Fé católica, ficou ele obrigado a cumprir penas espirituais, recitando cotidianamente as orações tradicionais da Igreja; imputava-se-lhe a pena de dez anos de degredo nas selvagens terras do Brasil.”

O romance é dividido em 15 capítulos que relatam a trajetória de Delgado: da condenação em 1669, sua chegada à Bahia, as duas décadas que viveu no país, a nova condenação da Inquisição e o derradeiro degredo “em perpetuidade” nas terras de Angola. O interessante da obra é que ao se ler o Sumário — geralmente de uma palavra como título do capítulo —, o leitor tem um resumo da narrativa, o capítulo tem como título o resumo do que será narrado.

Depois de ter vivido pequenos casos amorosos/sensuais em Portugal, ter sido condenado e conseguido sobreviver na travessia do Atlântico, Luiz Delgado chega a Salvador e consegue emprego numa loja de tabaco. Com a morte do tabaqueiro, ele aceita se casar com a afilhada dele (Florência) e eles firmam um acordo de castidade. Assim Delgado aos poucos consegue se livrar da autopunição e deixa vir à tona novamente seus desejos por homens. Depois de uma desilusão amorosa com o cadete Miguel de Soures, ele conhece o jovem Doroteu Antunes e a vida de ambos se modifica:

“Ao deixarem Luiz Delgado e Doroteu Antunes a cama na rua dos Cavaleiros, já perto do surgir do sol, despediram-se com muitas palavras sentidas”.

Mesmo vivendo sob uma sociedade arcaica, moralista, numa colônia do reino de Portugal e que igreja se sobrepunha ao poder político, Delgado “insistia em trazer debaixo de um guarda-sol seu moço Doroteu, passeando ombro a ombro pela cidade”. Evidentemente ambos não foram poupados e a repressão religiosa foi fulminante. No entanto neste romance constituído de realidade e fábula, Vidal Porto surpreende o leitor: em todos os capítulos o narrador está na terceira pessoa, mas o derradeiro capítulo é narrado em primeira pessoa, pelo próprio Luiz Delgado, com um desfecho inesperado.

Com o olhar de hoje, em pleno século XXI, o leitor pode estranhar: como uma pessoa que expressa seu amor e se dedica à pessoa amada — mesmo sendo ambos do mesmo sexo — pode ser condenado à morte (quase na fogueira da Inquisição)? Entretanto e paradoxalmente o Brasil ainda é hoje o país que mais mata pessoas da comunidade LGBT, principalmente pessoas trans e as travestis.

Sodomita, mais do que ser um romance de entretenimento, provoca reflexão sobre lgbtfobia, preconceito e violência social. Até quando teremos de conviver com tamanha intolerância, discriminação e abuso de poder?

Ficha técnica:

Título: Sodomita

Autor: Alexandre Vidal Porto

Editora: Companhia das Letras, 160 pgs

Preço: R$ 69,90

O dono da resenha.

Maurício Mellone é jornalista com mais de 40 anos de estrada, fez carreira na imprensa de São Paulo – rádio, TV, impresso e assessoria de imprensa.

Foto em destaque de Alexandre Vidal Porto: Alexia Fidalgo (colhida do site Medium).

Foto de Maurício Mellone: divulgação.

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Edgard Homem

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